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"As Cortes e a Constituição não são coisa nova nestes Reinos: são os nossos direitos e os dos nossos Pais." — in Manifesto da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, de 15 de Dezembro de 1820
O desígnio banalizador que expusemos atrás quando dedicámos algumas linhas aos fundamentos da "epistemologia" do insigne matemático René Descartes terá, sem dúvida, parecido excessivo aos nossos amigos de índole mais positivista, mas acontece que aquilo que pode distinguir com maior precisão os modernos Iluminados dos seus ilustres predecessores renascentistas é, precisamente, o tipo de Homem que tomam como modelo. Enquanto estes se tinham lançado numa alucinante marcha à ré em busca da sabedoria não adulterada dos Antigos Mestres e do Homem Arquitecto, a ambição dos visionários que se lhes seguiram, já curtida pelos rigores do tempo, era um pouco mais rasteira e ficou-se, por assim dizer, pelo homem nu, tipo... assim... "quase como veio ao mundo"...
Porém, contrariamente àquilo que se possa pensar, o ódio visceral que o moderno Iluminado desenvolveu relativamente aos Antigos Mestres depois de os despir da idealização bem intencionada em que aqui temos insistido não é uma mera suspeita de crítico empedernido... e está tão presente nas origens da Modernidade como na sua maturidade desiludida, mais de cem anos depois — senão vejamos:
Qui est-ce qui nie que les savans sachent mille choses vraies que les ignorans ne sauront jamais ? Les savans sont-ils pour cela plus près de la vérité ? Tout au contraire, ils s'en éloignent en avançant, parce que la vanité de juger faisant encore plus de progrès que les lumières, chaque vérité qu'ils apprennent ne vient qu'avec cent jugemens faux. Il est de la dernière évidence que les Compagnies savantes de l'Europe ne sont que des écoles publiques de mensonge, & très-sûrement il y a plus d'erreurs dans l'Académie des Sciences que dans tout un peuple de Hurons. Émile, L. 3.
[Quem negará que os sábios saibam mil coisas verdadeiras que os ignorantes não saberão jamais? Os sábios estarão, por isso, mais próximos da verdade? Bem pelo contrário, eles afastam-se dela quando progridem, porque como a vaidade de ajuizar faz mais progressos do que as luzes, cada verdade que descobrem chega sempre com cem juízos falsos. Como se tem vindo a tornar evidente, as Sociedades de sábios da Europa não passam de escolas públicas da mentira, e encontram-se seguramente mais erros na Academia de Ciências do que numa aldeia de Hurões. Emílio, Livro 3.]
Em J.-J. Rousseau, "Rousseau, Juge de Jean-Jacques — Dialogues". Londres: (Brooke Boothby),
1782 [redacção, 1772–76; pub. inicial, (1780)], Tomo 2, Troisième Dialogue, p. 186.
Agora, a amargura do bem intencionado ultrapassa finalmente a faculdade de julgar, moralmente metamorfoseada, em vez de numa linda borboleta, na gorda e horripilante traça que é a vaidade de julgar... Para o moderno não foi preciso muito mais de um século para descobrir que, bem vistas as coisas, "o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso" não era mesmo "a cousa do mundo mais bem distribuída"... Que aborrecimento... Porém, essa descoberta não estava desligada da mais importante das consequências...
... afinal, o sítio onde esse "poder de bem julgar" jamais se poderia encontrar de forma alguma era — pasme o patego! — entre "os sábios"!!!
Ora, se a banalização da faculdade de julgar funcionou de forma tão útil no que respeita ao poder de bem julgar, nada mais seria necessário senão encerrar com chave de ouro a questão da Moral... ou seja, cilindrar a viciosa ufania dos sábios...
Sumário da Modernidade II
Das Boas Intenções ao Inferno
Sem, de forma alguma, pretender elaborar eruditamente sobre o assunto — algo de tão inaceitável para um moderno do século XVIII como para um leitor desta nossa contemporaneidade tão... hipermoderna —, assim como Descartes nos serviu de paradigma para a banalização da faculdade de julgar, Jean-Jacques Rousseau pode desempenhar o mesmo papel no que respeita à banalização da Moral que, no fundo, mais não corresponde do que à consequência lógica daquela moral provisória que o seu precursor nos tinha proposto logo de início...
(...) la nature a fait l'homme heureux & bon, mais que la société le déprave & le rend misérable. L'Emile, en particulier, ce livre tant lu, si peu entendu & si mal apprécié, n'est qu'un traité de la bonté originelle de l'homme, destiné à montrer comment le vice & l'erreur, étrangers à sa constitution, s'y introduisent du dehors, & l'alterent insensiblement.
[A natureza produziu o homem feliz e bom, mas a sociedade corrompe-o e torna-o infeliz. O "Emílio", em especial, esse livro tão lido, mas tão mal compreendido e tão pouco apreciado, é apenas um tratado sobre a bondade original do homem, destinado a mostrar como o vício e o erro, estranhos à sua constituição, se introduzem nele a partir do exterior e o modificam imperceptivelmente.]
J.-J. Rousseau, "Rousseau, Juge de Jean-Jacques — Dialogues". Londres:
(Brooke Boothby), 1782 (1780), Tomo 2, Troisième Dialogue, p. 224.
"Bondade original"? Claro! Nesta altura, já estamos habituados a que o bem intencionado moderno disponha assim livremente do nosso Cosmos a partir do... seu Verbo.
Segundo anuncia este novo insuflador do espírito, afinal o homem nasce bonzinho e contente, e é a sociedade — "a boa sociedade", ter-se-ia esquecido de adjectivar... — que o maltrata. Ora, além de imediatamente nos saltar à vista o sorriso cândido do recém-nascido inocente, facilmente imaginamos as mamocas que tanta felicidade lhe dão. Os tratos de polé a que a sociedade bem-pensante (da época, claro), depois, sujeitava a indefesa criatura, isso nem vale a pena lembrar... são por demais evidentes.
Ora aí temos a banalização naturalista da moral — o apelo à lágrima fácil da comiseração que instituiu o sentimentalismo burguês e a apologia onírica dessa felicidade original e impensada, fabricada de puro desejo, essa felicidade na saciedade que irá ser o esteio daquele sensualismo igualmente burguês.
Não nos censurarão agora por perguntarmos que patético desígnio poderia ocultar esta urbanizada "moral natural" do burguês que nunca soube o que era semear uma batata ou depenar uma galinha... Afinal, se a banalização da faculdade de julgar já tinha antes estabelecido o império da opinião — no fundo, aquele "direito ao livre-exame" que vinha de trás —, que "grande novidade" poderia lançar este insólito assalto à... "moralidade erudita"?
Sem pretender antecipar vastas torrentes de argumentos acerca de uma das perspectivas sob as quais é mais curioso observar a Modernidade — justamente, a da questão Moral e da lenta transformação deste conceito num palavrão obsceno —, permitam-nos lembrar que aquilo que nela se encontra velado é, essencialmente, uma acintosa apologia da vida instintiva. A esta regressaremos mais tarde.
Para já, de forma a sermos claros e objectivos nas nossas intenções e abreviarmos uma incursão que já vai excessivamente longa, a trama que temos vindo a expor é tão óbvia que só poderia escapar a uma geração particularmente embrutecida — afinal, de nada mais aqui se trata para além da exposição de um processo que visa a abolição dos valores que decorreram da difusão da Civilização Cristã na Europa.
Não é novidade nenhuma??? Claro que não! ... Mal seria se nos propuséssemos encontrar mais novidades além das que nos oferecem de bandeja os modernos — sejam super, sejam hiper, sejam eternos!
Prosseguiremos entretendo-nos com antiguidades — descendo aos infernos, portanto...
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Apenas para os sentimentalistas verdadeiramente burgueses:
uma antiguidade moderna... ou uma modernidade antiga, talvez...
[Giovanni Bragolin, "O Menino da Lágrima", c. 1950]
[a sério: vale mesmo a pena ir ver!]
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