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"As Cortes e a Constituição não são coisa nova nestes Reinos: são os nossos direitos e os dos nossos Pais." — in Manifesto da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, de 15 de Dezembro de 1820
Um dos maiores feitos do travestismo iluminista contemporâneo foi o de ter conseguido escamotear ao escrutínio do público o sonoro conceito de cibernética e substituí-lo descaradamente por uma parafernália de temas, narrativas e projectos que ou conduzem até alguma microscopia do universo e da vida, ou, mais geralmente, até uma visão apoteótica da tecnociência.
E consideramos "maior" esta proeza não porque afecte minimamente as massas embrutecidas pelo festival psicadélico que lhes oferecem as mágicas próteses hedónicas agora disponíveis a preço de feira; ou porque ela perturbe de alguma forma as novas elites, entretidas com o onanístico gozo da recém-conquistada omnisciência; mas apenas porque tem o condão de cortar as asas a todos aqueles que a partir daquele conceito poderiam ensaiar qualquer voo mais alto...
Outro dos maiores feitos do travestismo iluminista de que falamos foi o de fazer crer aos ingénuos que essa coisa da cibernética cujo nome envolvem em espessa poeira teria sido uma das maiores criações dos tempos recentes.
E como o travestismo está repleto de soberbas proezas para os incautos, para concluir com chave de ouro ainda consegue convencê-los de que tudo isso é... "um milagre"...
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Ora, aquilo que os iluminados filantropos conseguem ocultar aos olhos dos mais distraídos é que a cibernética está presente na cultura dos homens desde a mais remota noite dos tempos. E os nossos amigos apenas têm sucesso nesse desígnio porque, como temos vindo a demonstrar, possuem uma especial arte de abastardamento no que respeita à linguagem. Vejamos então...
ci·ber·né·ti·ca
(inglês cybernetics, do grego kubernetikê, arte do piloto, arte de governar) · substantivo feminino · Ciência que estuda os mecanismos de comunicação e de controlo nas máquinas e nos seres vivos.
"cibernética", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha],
2008-2013, [consultado em 05-06-2015].
... ou, se não for suficiente:
cibernética
ci.ber.né.ti.ca [sibərˈnɛtikɐ] · nome feminino
1. ciência e técnica do funcionamento e do controlo dos comandos electromagnéticos e das transmissões electrónicas nas máquinas de calcular e nos autómatos modernos.
2. estudo das conexões nervosas nos organismos vivos ou nos grupos humanos.
3. ciência que estuda os mecanismos de comunicação e de controlo nas máquinas e nos seres vivos.
Do grego kybernetiké, «a arte de governar».
"cibernética", in Dicionário da Língua Portuguesa sem Acordo Ortográfico [em linha].
Porto: Porto Editora, 2003-2015 [consult. 2015-06-05 00:22:21].
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Entre toda a poeira levantada pelo jargão da tecnociência, qual será o cidadão votante que se consegue aperceber da definição incrivelmente simples do conceito "cibernética" ???
E todavia, temos de reconhecer que estes feitores do sentido realmente se esforçam para iludir qualquer acusação de dolo, uma vez que no meio da poeira, cuidadosamente camuflado como "velharia grega", lá se encontra o essencial — cibernética é a arte de governar... Bem vistas as coisas, o que está na origem da "cibernética" e do "governo", ou da "governação", é exactamente... o mesmo.
De resto, quem fez já alguma estrada até consegue ver nas "generosas" definições acima transcritas muito mais do que o essencial: cibernética é a arte de governar os animais e as máquinas. Afinal, Norbert Wiener nos não nos é, propriamente, um desconhecido.
Sobre as particularidades desta convicção, muito haverá ainda a dizer, mas para que não fique envolta em brumas desde já, será conveniente recordar que uma boa parte dos pensadores da Grécia Clássica se tinham já dedicado ao esclarecimento das condições de exercício do governo dos homens.
Prossigamos, portanto, em ritmo moderado, uma vez que começam a tornar-se mais claras algumas das razões da aversão secreta da modernidade à cultura clássica...
Com efeito, muito mais importante até do que tudo aquilo que o classicismo grego terá inventado no âmbito da arte do governo dos homens, é precisamente o facto de ele ter conseguido transformar numa arte aquilo que antes não passava de um exercício mais ou menos empírico — ou, quando muito, de um saber oculto.
Isso porque as dispersas comunidades de cidadãos desse povo de marinheiros e comerciantes acossados pelos impérios e ciosos da sua autarquia rapidamente sentiram a necessidade de fixar com clareza os princípios por que consensualmente decidiam reger-se — ou seja, de certa forma retirarndo a cibernética tanto ao domínio da mera repetição de hábitos ancestrais como ao domínio do segredo dos deuses.
Atendendo a que não vamos ensaiar aqui nenhuma epítome da história do pensamento grego, registaremos apenas uma breve nota sobre as incursões cibernéticas dos seus dois maiores expoentes para, de algum modo, nos balizar o percurso...
Ora tanto Platão como Aristóteles, filósofos que dedicaram algum do seu tempo à reflexão sobre o governo dos homens — ciência essa que, entretanto, tinha passado a mostrar-se sob a mais urbana designação de política —, fizeram depender o êxito dos excelentes princípios que entenderam propor da respectiva comunicação e controlo através de uma actividade que na altura tinha por nome παιδεία...
"Paideia" — eis outro conceito que a "história" se encarregou de imperialmente nos surripiar do horizonte, substituindo-o discretamente pela mais latina "educação". Como se da poeira do labirinto das palavras não se soubesse reerguer o arcaico espectro que lhes insuflou a ideia e nos não conduzisse ele pela mão até realidades mais... bárbaras...
Para além da desestabilização que provoca a associação pública dos bicudos conceitos de educação e governo — como acabamos de constatar, sempre condenada a promover as mais bizantinas questões —, é o cândido exoterismo demonstrado por estes impertinentes filósofos que belisca até à exasperação a fina sensibilidade filantrópica dos nossos modernos mestres — só como exemplo:
(...) at the same time we ought not to think that any of the citizens belongs to himself, but that all belong to the state, for each is a part of the state, and it is natural for the superintendence of the several parts to have regard to the superintendence of the whole. And one might praise the Spartans in respect of this, for they pay the greatest attention to the training of their children, and conduct it on a public system.
[ (...) simultaneamente, não devemos pensar que cada um dos cidadãos seja dono de si próprio, mas sim que todos eles pertencem ao Estado, pois cada um deles é uma parte do Estado, e é natural que o comando das partes se faça de acordo com o comando do todo. Podemos, por isso, louvar os Espartanos, uma vez que dedicam a maior atenção ao treino das suas crianças e o realizam através de um sistema público.]
Aristóteles, Política, in Aristotle. Aristotle in 23 Volumes, Vol. 21, translated by H. Rackham.
Cambridge, MA: Harvard University Press; London: William Heinemann Ltd., 1944, [1337a].
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— Os cidadãos não são donos de si próprios ???
— Os cidadãos pertencem ao Estado ???
Temos de reconhecer — tanta franqueza é excessiva...
Quem desejaria, então, ser governado ???
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O sofisticado sistema binário da cibernética analógica
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A Razão como naturalmente igual, a Moral como disposição natural, a Revolução como progresso...
Actualmente, é praticamente impossível para o senso comum não ver em cada uma destas ideias senão o enunciado insofismável de um princípio tão óbvio como benéfico, e ainda que já tenhamos mostrado como nenhuma delas possui a menor razoabilidade, até para o mais banal senso comum não haveria nada mais fácil do que comprovar empiricamente o seu absurdo...
Temos de reconhecer, portanto, que embora sejam suficientes uns instantes para compilar colecções de evidências demonstrando irrefutavelmente o absurdo desta axiologia Iluminista, não é também concebível tarefa mais fútil, mais contraditória — e isto porque, contrariando os modernos, é exactamente o postulado da razoabilidade espontânea do Homem que tomamos como altamente improvável...
Assim, deixando de lado, para já, os segmentos da população em que se vão desenvolvendo alguma apetência e competência para avaliar criticamente "o universo envolvente", avançaremos directamente para aquele grupo que se define exactamente pelo contrário — ou seja, pela falta de predisposição ou competência para avaliar criticamente aquilo que lhe é dado: referimos assim aquela entidade que se convencionou designar como "a massa" — a multidão acéfala, o povo destituído de tudo quanto o poderia caracterizar, o macaco nu ao qual, subitamente, se garantiu ter na mão os desígnios do globo.
Talvez se compreenda, agora, qual a razão porque desde o início nos preocupamos menos em argumentar com as massas do que em perceber por quê, como e para quê precisam os Iluminados de decapitar os Povos...
... e embora pudéssemos ilustrar o fundamento da nossa intenção com incontáveis referências aos arcanos, atendendo a que a linguagem destes já no-la tornaram opaca, teremos de recorrer exactamente à precisão asséptica e cirúrgica de um dos novos pontífices:
Le discours n'est pas simplement ce qui traduit les luttes ou les systèmes de domination, mais ce pour quoi, ce par quoi on lutte, le pouvoir dont on cherche à s'emparer.
O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominação, mas aquilo por que se luta, aquilo com que se luta, o poder que se procura conquistar.
Michel Foucault, L'Ordre du Discours. [Paris]: Gallimard, 1971, p. 12.
Dispensamo-nos de aprofundar tão colossal evidência — afinal, o carácter cibernético do ser humano não é novidade nenhuma. Mas como, uma vez mais, o nosso palato já só responde ao receituário da moda, aí deixamos a referência a um dos seus principais cozinheiros — Norbert Wiener.
E se não é ainda suficientemente óbvia a conexão entre a conveniência de massificação dos humanos e o carácter condicionado do seu agir, limitamo-nos a invocar a razão de existir do quarto poder:
"Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade."
... e para encerrar, bem podemos deixar a pergunta sobre qual será o caldo de cultura mais propício à difusão das novas tendências nas historinhas de encantar... É que estas ficarão para a próxima...
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A cibernética na era analógica.
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