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"As Cortes e a Constituição não são coisa nova nestes Reinos: são os nossos direitos e os dos nossos Pais." — in Manifesto da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, de 15 de Dezembro de 1820
pausa higiénica, parte 2
Agora um pouco mais "ao fresco", percebemos que Kant não nos admoestava afinal sob a toga de um causídico na barra do tribunal da razão, mas sob um uniforme de general numa corte marcial da sua Prússia natal...
... e como, até entre filósofos, a constatação anterior pode suscitar algum franzir de sobrolho censório...
... passamos ao...
(gabinete das curiosidades — exibição número dois)
Ainda que numa época subordinada ao viscoso escrutinio dos comissários políticos da República Popular do Politicamente Correcto imputar toda uma cultura de algum vício constitutivo seja um crime passível de lapidação intelectual sumaríssima e até que esse tipo de "operações de generalização amplificante" nos sejam por princípio antipáticas, cumpre-nos a penosa tarefa de lembrar que assim como o Imperialismo napoleónico foi o aborto do Iluminismo gaulês, o Iluminismo germânico foi um dejecto do Imperialismo prussiano — tal como o ouroboros, seja na genealogia seja na escatologia, o Iluminismo não passa de uma criatura de Impérios...
Portanto, na vitrina do Imperialismo Iluminado em Passo de Ganso gostaríamos de destacar — o autoritarismo psicótico (só como exemplo, a infância e juventude de Frederico, o Grande, vividas sob a tutela draconiana de seu pai Frederico Guilherme, são capazes de levar às lágrimas o racionalista mais empedernido), o militarismo demencial ("A Prússia não é um país com um exército, é um exército com um país", lá dizia quem sabia...) e o legalismo compulsivo (um código civil com 19 000 artigos não podia deixar de estar presente num gabinete de curiosidades que se preze...).
b) apontamento a reter...
Como estamos "ao fresco" e podia "ir com o vento", será bom registar que o Despotismo "Esclarecido", o Exército Permanente e o Jusracionalismo Civilista desabrocharam com grande vigor nesta Prússia modernista de que estamos a falar...
— despotismo, militarismo e legalismo —
... três dos palavrões a levar do recreio...
•
E agora que se faz tarde...
— Toca lá a marchar, maçarico !
(a pausa higiénica era para manobras de campo, afinal)
•
Bem-Vindos ao Aufklärung !
Sapere Audete, Cambada !!!
(ou... — Cada vez mais crescidos !)
(pausa higiénica)
Até este momento, colocámos sob a lente do nosso microscópio as primeiras 112 palavras (tradução portuguesa, claro) da alegadamente "luminosa" (e "clássica") exposição kantiana sobre o Iluminismo.
O único comentário que se nos oferece é o de que ela é realmente "luminosa" pela forma como nos encandeia até à cegueira (e "clássica" pelo exemplo que nos dá dos malabarismos conceptuais tão indissociáveis do pensamento Moderno).
Se até aqui distinguimos um sinal de luminosa erudição, foi na arte demagógica como Kant conseguiu revestir de "colorida simplicidade infantil" uma data de problemas que afligem, pelo menos, alguns seres humanos desde a mais remota noite dos tempos.
Ao "trocar em miúdos" — e "para os miúdos" — o "problema original" do Iluminismo (que é, basicamente, o mesmo da Modernidade), engendrou-nos uma geringonça conceptual a desengonçar por todos os lados... (Como esta ideia da geringonça voltou a estar na moda entre as nossas bandas, aproveitamo-la também para dar aquele toquezinho moderno às velharias que aqui vamos trazendo a palco...)
Aquele tribunal em que pretende vestir a toga de acusador para nos (a nós, homens) desmascarar a indecisão e a cobardia não é, podemos afirmá-lo decididamente agora, o tribunal da razão — embora o ingénuo, deslumbrado com a "maioridade" dos "amanhãs que cantam", silenciosamente seja induzido a aceitá-lo como tal.
Isto porque aquele imperturbável rigor geométrico indispensável para a demonstração caiu da carroça logo ao primeiro solavanco... Quando o Idealista Transcendental se põe a aguilhoar o homem com a excelência de virtudes como a ousadia e a coragem, as paixões põem ao homem logo o sangue a ferver...
... E cego pelo fervor, já pouco lhe interessam as petições de princípio que encontra a seguir !!!
Olé !!!
A menos que...
... a menos que...
... a menos que...
(gabinete das curiosidades — exibição número um)
Então não é que este mesmo vosso criado que aqui presunçosamente vai registando estas linhas se estava a deixar levar na cantiga ???
Ele próprio encandeado pela aparente fragilidade da retórica do Iluminado, estava a esquecer-se que já lhe tinha apontado um duplo registo !!!
a) autocrítica e revisão da matéria dada (e alguma a dar ainda)
Quando, de forma metódica e disciplinada, enumerámos as fontes de norma moral que poderiam fundamentar a acusação moral do autor e nelas incluímos as que a razão costuma indicar, além de outras que a razão gosta de afastar, acabámos por deixar de lado aquelas que a razão realmente ignora: as meta-racionais.
Como ainda não chegou o momento de expor o intricado, apresentaremos apenas uma definição superficial desta coisa como:
"As fontes de norma moral de âmbito meta-racional consistem (pelo menos) nas que derivam dos códigos de honra das sociedades privadas."
Ora, na nossa ligeireza quase infantil ("Humana, demasiado humana", diria o outro...), estávamos a esquecer que a ousadia e a coragem se encontram ENTRE AS MAIS EXCELSAS VIRTUDES CASTRENSES...
... e de associar a este "pequeno pormenor" o facto de que a invenção do moderno exército permanente foi precisamente uma das maiores façanhas dos prussianos Fredericos, compatriotas do camarada que nos vai inspirando estas linhas !
Então, para o iniciado, um dos cenários que se lhe foi configurando desde o início foi O DA CORTE MARCIAL em que está em juízo o puto acabrunhado, aquele maçarico verde e cobarde que voltou as costas à carga heróica sobre o pavoroso inimigo...
Puxa !!! Quanta ingenuidade nossa, Senhor !!!
... E o embasbacamento é tal que vamos ter de prolongar mais um pouco esta...
(pausa higiénica — à suivre ela mesma também...)
•
Representação idealizada dos Granadeiros
Prussianos ao tempo de Frederico II (século XVIII)
durante manobras de campo
Estes já estão uns homenzinhos, caramba !
Depois de nos apresentar no primeiro parágrafo a sua tese, a que decidiu associar uma acusação, e nos transportar retoricamente do mundo das razões para o mundo dos motivos, o nosso filantropo conduziu-nos, decididamente, para o cenário de uma barra de tribunal. E nela, em vez de solicitar o papel de juiz e filosoficamente argumentar sobre a questão tendo em vista uma decisão equânime e isenta, preferiu envergar a toga do acusador, assestando contra o homem toda a acrimónia da sua verve...
Quanto a nós, que recusamos a adesão interesseira dos leitores mais rebeldes às primícias do escândalo mediático — tanto mais que já somos capazes de intuir como este corrosivo estilo panfletário florescido com as Luzes é também um dispositivo para encher o estômago aos empreendedores da edição e que já expusemos como deve estar associado a uma evidente intenção / interpretação em "duplo registo" —, iremos manter um espírito de circunspecção e prosseguir com... método.
•
" Resposta à questão: — O que é o Iluminismo ? "
(a partir do texto homónimo de Immanuel Kant, 1784)
Segundo Parágrafo
5. "A preguiça e a cobardia são as causas de os homens em tão grande parte, após a natureza os ter há muito libertado do controlo alheio (naturaliter maiorennes), [482] continuarem, todavia, de bom grado menores durante toda a vida; e também de a outros se tornar tão fácil assumir-se como seus tutores."
— É assim que o autor dá início à discussão da sua "tese". Colocamos agora "tese" entre aspas porque, de forma mais precisa, se trata de uma acusação — um libelo.
— Começa aqui, portanto, a expôr as suas alegações. Notemos porém que, invocando o autor a prática de uma ilicitude, deveria claramente mencionar à cabeça sob qual lei vigente a pode identificar como tal... Levanta-se assim uma questão assaz peculiar e merecedora de especial atenção — por exclusão de partes: o autor da acusação não invoca qualquer tipo de infracção a algum:
1) mandamento divino ou sobrenatural ou
2) prescrição das tradições, costumes ou usos de
qualquer comunidade ou local...
... da mesma maneira, não vislumbramos o vestígio da menção de qualquer:
3) preceito de ordem natural,
4) norma de algum sistema legal ou
5) decreto soberano de algum potentado.
— Nada dissso... como desde as primeiras linhas já tudo parecia indicar, não nos encontramos em nenhum foro de ordem racional, mas perante uma censura de ordem moral (note-se que apenas subscrevemos neste local esta distinção porque ela é central ao próprio sistema kantiano) de contornos peculiarmente difusos.
— Em consequência, no que toca à infracção cometida encontramo-nos no habitual miasma nebuloso que tanto agrada a estes mestres da dissimulação: o seu fundamento consiste apenas na vaga remissão para um (f)acto de natureza:
"a natureza" + "há muito (tempo ?)" + "os libertou (aos homens)" +
"do controlo alheio (sem especificar ainda quem ou o quê poderá ser este "alheio")"
— À proposição que apresenta, associa o autor a pomposa designação latina de "naturaliter maiorennes" (ou seja, "maioridade por natureza"). E com esta operação de erudição pedante, silencia todos os infantes. Lá está — os menores: como ignoram a língua em que lhes falam, acabam por acatar o pedantismo como axioma. Para nós, que não lhe vemos evidência nenhuma, gostaria o autor que passasse por postulado. O que até poderíamos aceitar, se não lhe antecipássemos o vício. Assim, não estaríamos dispostos a atribuir-lhe senão o valor de uma hipótese... isto se o autor se propusesse à respectiva avaliação... o que não acontece. Portanto, não passa de uma daquelas petições de princípio rotineiras entre os Modernos...
— E passamos nós a explicar porque a taxamos de petição de princípio — ora, diz o autor que:
1) a natureza
2) há muito (tempo ?)
3) libertou
4) (os homens)...
(deixamos o "controlo alheio" para mais adiante...)
— ... retorquimos nós:
1) que "natureza" é esta que aqui tão "naturalmente" aparece ???
— a "natureza-mãe", a "matéria", a "natureza sensível" de que são "feitas" as "coisas" ?
— ou aquela "natureza humana", aquela "natureza-forma", aquela "essência" que as "modela" ?
— as duas ao mesmo tempo ?
— ou ainda "outra coisa qualquer" ???
Ignoramos...
2) que "há muito" vem a ser este que tão "brevemente" aqui é mencionado ???
— Supusemos nós "tempo"... sem sequer fazer ideia de "quanto"...
— Poderá ser "muita" a "eternidade" também ?
— Ou referir-se-á o autor "à sempre excessiva espera de um tempo que tarda a chegar" ???
— Ou será ainda qualquer coisa de "outro", incluindo isto tudo e o contrário também ?
Ignoramos...
3) "libertou" ???
— Que vem a ser isto ???
— Uma antropomorfização da "Natureza-Mãe" ???
— Um teleologismo essencialista ???
— A remissão para alguma Antropo-Cosmo-Teologia redentora de um estado primal
decaído, ou uma espécie de Teologia da Libertação avant la lettre ???
— Sinceramente, esta da "natureza libertadora" não poderia ocorrer senão a um Iluminado
muito para além de toda a experiência possível...
Enfim...
Finalmente, os habituais 4) "homens"...
... e chega, pois já nos cansámos de desmontar esta abstracção obtusa da "humanidade em
geral", sujeito de predicação de qualquer patacoada que lembre assim no momento...
(Só porque nos move uma irritante sensibilidade aos disparates, basta mencionar que há duas ou três linhas atrás o próprio autor tinha admitido que poderiam existir alguns desgraçados mais ou menos "carentes de entendimento"... Ora, não serão eles humanos também ? Ou serão então as vítimas inocentes de alguma discriminação naturalística ???)
Basta...
•
Argumentar com Modernos, dá sempre nisto... e quando Iluminados, ainda é pior...
O grave problema de pretender fundamentar racionalmente a faculdade de julgar conduz sempre àquele bico de obra de ter de fundamentar racionalmente a razão... ou seja, de tentar levantar a mesa quando estamos sentados em cima dela...
Em consequência, começa sempre o Moderno por lugares comuns ou petições de princípio. Não há apriorismo que lhe valha.
E só nos entregamos a este (inconsolável) desabafo porque depois de nos embrenharmos em meia dúzia de linhas deste "luminoso texto" continuamos sem avançar sequer um passo... bem pelo contrário — regredimos até ao princípio dos tempos...
•
Afinal, este "segundo parágrafo" vai-nos tomar...
... mais um bocadinho...
•
Ouroboros
O Idealista Transcendental saboreando a sua vitória...
... ou quando um fulano acaba por reconhecer que aquilo que
está antes da física é precisamente... a metafísica...
•
(à suivre...)
" Resposta à questão: — O que é o Iluminismo ? "
Não existe vilania mais bem descrita neste mundo do que aquela que resolveram dar pelo nome de "Iluminismo" — sobretudo porque tanto os seus desígnios como os seus métodos foram desde os primeiros passos amplamente expostos pelos seus próprios apaniguados.
De entre estes avulta o nome de Immanuel Kant, o mais incontornável dos filósofos idealistas, que nos distinguiu exactamente com o óbolo de um curto e luminoso artigo cujo título coincide precisamente com o que escolhemos para epigrafar estas nossas incomparavelmente mais obscuras linhas.
Contudo, e de forma ainda mais interessante, é notável como entre os expoentes da intelligenzia local pós-Abrilista, esse texto de Kant que na sua bonomia pré-revolucionária e pré-imperial antecipa já o sonoro eco da preta botifarra prussiana esmagando sob a pesada sola os minguados rebentos de uma Europa calcinada pelas revoluções das revoluções, continua a ser aplaudido enquanto "um dos mais contundentes apelos ao exercício autónomo da razão, à liberdade de pensamento".
Como, contrariamente a estes espíritos tão esclarecidos, não dispomos do privilégio da interpretação autocomplacente, iremos dedicar-nos à ingrata tarefa de analisar o célebre texto em pormenor. Sim. O nosso obscurantismo a tal nos obriga. Felizmente, as suas linhas são poucas e uma das versões rendida a vernáculo encontra-se graciosamente aqui — mais um gesto de profunda filantropia de um dos lídimos representantes das nossas elites contemporâneas. Aqui registamos o nosso "muito obrigado".
E deixemo-nos de vãs palavras...
•
Mais uma vez...
" Resposta à questão: — O que é o Iluminismo ? "
(a partir do texto homónimo de Immanuel Kant, 1784)
1. "lluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado."
— É com este bombástico libelo que o nosso autor inicia o seu esclarecimento. Em duas penadas lhe traça o cenário, envergando desde já uma toga: a de ACUSADOR DO HOMEM.
— Quanto ao delito de que se trata, o cidadão apontado como culpado encontra-se praticamente como K. (esse outro "K." — do Processo de Kafka; e assim, também desde o início, distinguimos nós na nossa vereda o espectro de uma bárbara trindade de "Ks"...): está liminarmente afastado do processo em que é réu — será julgado à revelia, sendo notificado da culpa mas não sendo informado sequer de local onde apresentar a sua defesa...
2. "A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem."
— Neste segundo período, talvez para aliviar a perplexidade do réu desatento, o autor tem a bondade de lhe revelar que quando utilizou o termo "menoridade" não foi com nenhuma intenção metafórica, estilística ou de remissão para uma conotação menos comum. Não. Ele faz-nos o favor de sublinhar que se coloca num registo assaz literal — e nós próprios temos de o interiorizar, uma vez que a perplexidade desponta já com algum vulto... Definição: o menor é o incapaz de se servir do entendimento sem a orientação de outrem...
— Note o réu desatento que a legislação portuguesa, por exemplo, é bastante mais comedida nas suas ilações, assumindo que a "menoridade" é um estatuto eminentemente convencional, atribuído ao sujeito apenas em função da idade (Código Civil português, art.º 123); além disso, por curiosidade, está estreitamente associada a um estatuto de inimputabilidade (Código Penal português, art.º 19)... Pelo seu lado, o nosso autor é lapidar. Afinal, este pequeno artigo é já uma obra de maturidade. Ufano da sua Crítica da Razão Pura (1781), pode dar-se a esta sobranceria dogmática. E nós só registamos o facto porque, como é habitual nos Iluminados, se parte sempre de camufladas petições de princípio... ou seja, porque para nós que nos movemos já faz algum tempo nestas veredas, nunca há nada de menos óbvio do que as muito modernas evidências de senso comum...
— Portanto, seguindo nós metodicamente, vamos fazer nós mesmos o necessário ponto da situação (uma vez que embora só tendo avançado duas linhas, o grande Kant já nos deixou na esfera da mais pura retórica delirante): então, para já...
"O Iluminismo é a saída do homem da sua incapacidade de se
servir do entendimento sem a orientação de outrem, incapacidade essa
de que ele próprio é culpado."
— Para a rapaziada mais exaltada que ouve estas coisas nos corredores das escolas entre duas sessões de estouvada folia nos intervalos das aulas, ou seja, para os deslumbrados da promessa de liberdade rebelde que lhe trazem as luzes, o que demais encontramos nestas duas singelas linhas não passa de um soberbo apelo à "autonomia da razão"...
3. "Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não residir na carência de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo, sem a guia de outrem."
— Quando tudo parecia indicar que a ufania de Kant o iria levar numa direcção próxima da do seu precursor Descartes, postulando uma universalidade actual do entendimento em todos os homens (atendendo a que a Crítica da Razão Pura é uma genética sem genealogia, isso não seria de todo despropositado...), eis que nos mostra um pouco mais de discernimento e nos apresenta uma excepção para aquelas pobres almas mal aferidas (psiquicamente anormais, diríamos hoje, tal como o nosso Código Penal no seu art.º 20, curiosamente ainda sobre a questão da inimputabilidade), aquelas pobres almas mal aferidas, dizíamos, nas quais, afinal, até reconhece existir uma carência totalmente desculpável.
— Quanto aos outros, aqueles menores que apontava de início, — a quase totalidade deles simples réus distraídos —, lança sobre eles o anátema da indecisão e da cobardia como única justificação plausível para não "se libertarem desse alguém que os guia" e que ainda nem percebemos muito bem quem possa realmente ser...
— Porém, para nós que já sabemos que se conclui aqui o libelo do autor, resta-nos fazer um novo ponto da situação, clarificando novamente a tese que ele mesmo se propõe defender:
"O Iluminismo é 1) a saída dos homens da sua incapacidade de se servirem
do entendimento sem a orientação de outrem, 2) incapacidade de que eles próprios
são culpados quando se encontram na plena posse dessa mesma faculdade
de entendimento e 3) não se servem dela por indecisão ou cobardia."
— No que toca ao sector mais libertário da nossa intelligentzia local, esta tese simplesmente continua a equivaler ao mais sublime apelo à autonomia da razão, embora com tanto matraquear, sentimos que fervilha já nela o sangue na guelra, expectante de uma arrasadora investida sobre as primeiras "forças da autoridade" que lhe apareçam à frente...
— Quanto a nós, o cheiro a esturro é cada vez mais intenso... Para um espírito genuinamente metódico, a proposição que acima assinalámos com o número 1) seria suficiente para responder à questão colocada em epígrafe de forma estritamente argumentativa, geométrica até...
— Portanto, porque lhe associará o nosso famoso idealista transcendental as intimidatórias proposições número 2) e 3) ??? Prossigamos com a circunspecção que se impõe...
4. "Sapere aude ! [lat.: "Ousa saber !"] Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento ! Eis a palavra de ordem do Iluminismo."
— E é assim que termina o primeiro parágrafo o nosso autor... Para alguém que costuma ser apresentado como um dos mais notáveis expoentes do rigor dedutivo e do fino espírito analítico, parece que não estaria nos melhores dias... Então não é que fica agora claramente exposta a intenção da inclusão das proposições intimidatórias na sua tese ???
— Com efeito, o nosso paladino da razão decide iniciar a sua exposição do Iluminismo não com uma sólida tese isenta de falácias, mas com um desprezível apelo a motivos !!!
— Se nos três primeiros períodos não deixou de intimidar o leitor com o opróbrio da culpa cobarde, lança-lhe agora o repto da ousadia, o apelo ao reconhecimento de uma palmadinha nas costas filantropicamente oferecida pelo erudito dos eruditos... Percebemos então que não estamos no âmbito de uma filosofia das razões mas sim de uma filosofia dos motivos (mais uma vez, dois daqueles conceitos que a modernidade adora confundir...).
Sapere aude ! Avante camarada !
•
Longe da aridez esotérica da Crítica, encontramo-nos agora, portanto, no exotérico domínio da emotividade e do apelo às (sempre "boas") intenções.
Ninguém lê a Crítica da Razão Pura. No máximo, é uma coisa que se vai lendo. Aqui estamos no registo pop do panfleto — e é precisamente nesta arena que se mostra o homem completo. Afastado da frigidez geométrica da análise, o homem é aqui razão e paixão. Aliás, tem de ser sobretudo paixão — pois é só essa a linguagem que compreende o profano.
Encontramo-nos, portanto, no registo da(s) ideologia(s), no permanente apelo à empolgação dos motivos (e dos sentidos), na carga furiosa contra o outro, perante aquela luz que cega e empolga.
Não se pense, contudo, que o panfleto é vulgar literatura de cordel. Absolutamente ! Porque, por outros motivos, o iniciado de maior calibre também não pode (nem precisa) perder tempo com arrazoados...
Muito pelo contrário, o panfleto é aquele comburente que proporciona o encontro de iniciados e de profanos — é, exactamente, aquele comburente que proporciona as reacções que interessa ao iniciado aferir...
... e para já, basta...
•
Entre muitas outras virtudes, a "Resposta à questão: — O que é o Iluminismo ?" vai-nos
permitir compreender porque é que Kant nasceu em... Kaliningrado.
•
(à suivre...)
Depois de conceptualmente erradicar a religião do seu lugar central nas sociedades enquanto instituição depositária dos respectivos valores estrutrantes e entregar as suas funções naquela abstracta área do saber que viria a designar como "ciência política / direito constitucional" ou coisa que o valha, o Iluminismo encontrava lançadas as bases da desmontagem do "Ancien Régime".
Resgatadas as Utopias dos velhos mestres e lançado o "concurso de ideias" para a concepção "da mais excelente Sociedade Ideal" — leia-se, "da mais sedutora ideologia" —, pareceu obnubilar-se da mente de todos intelectuais de vanguarda a constatação básica de que jamais se viu sobre o chão deste mundo uma única sociedade digna de memória que não estivesse assente sobre um conjunto de valores considerado sagrado e digno de culto ritual (ou seja, de reactualização periódica)...
... isto desde as mais pragmáticas teocracias do Extremo Oriente, das quais ainda nos sobra o exemplo vivo nipónico, às mais remotas civilizações da Antiguidade, seja ela arcaica ou greco-romana, assim como a todas as sociedades que se lhes seguiram — com a muito recente (e suposta, convém admitir) excepção URSS de Lenine e Estaline e todas as sanguinárias experiências (mais uma vez, supostamente) ateias a que deu origem.
•
Repetimos — esta evidência incómoda só parece escapar aos nossos intelectuais de vanguarda que, como vimos anteriormente, se vão escudando numa espécie de Hegelianismo ou Comtismo ingénuos (e cujo deísmo parece ficar então autojustificado), ou num ainda mais básico Darwinismo social cujas genuínas consequências bio-psico-sociais se esforçam por manter na penumbra (veja-se o esclarecedor caso de James Watson)...
Contudo, é necessário perceber que estes periclitantes refúgios da ignorância apenas vão aparentando alguma sustentabilidade ingénua — "intuitiva" — porque são resultado de um outro fenómeno de mistificação religiosa já atrás também referido mas que passamos seguidamente a esclarecer.
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Como vimos, depois de subtrair a axiologia e a ética da esfera da religião para as depor aos pés da ciência política, restava ao Iluminismo catalogar a religião como "apenas mais um tipo de esquizofrenia delirante" ou, para não perturbar os menos ignorantes, outra manifestação daquela "tendência natural do humano para as narrativas explicativas de carácter fantástico" — isto é, daquele fundo mítico, místico e mágico que em que assentam geralmente as culturas.
Ora esta atrevida manobra, tomada com rigor sistemático sobretudo a partir de Kant, apresentava diversas vantagens: além de colocar todo o fenómeno religioso sob a alçada da história e, consequentemente, toda a ordem fenoménica sob a alçada da razão pura, entregava por atacado todo o depósito das Escrituras aos estudiosos da literatura...
•
Curiosamente, é precisamente neste particular que devemos manifestar a maior condescendência para com os Iluminados, pois em boa verdade eles mais não fizeram do que emular uma triste tendência...
E não, não nos referimos àquela que inauguraram os teólogos especulativos que desde a noite dos tempos nos vêm preleccionando acerca do Absoluto como se fosse o mais insignificante apontamento de agenda... Quanto a estes, talvez lhes venhamos a dedicar umas linhas um dia...
Nem nos referimos também à dos saudosistas do classicismo greco-romano (e de outras coisas bem menos clássicas), com a pretensão de desenterrar do passado a ciência retrógrada dos impérios caídos...
Não nos referimos sequer às outras dos prosélitos das seitas protestantes, cuja patética reivindicação ao "livre-exame" acabou por fazer do inestimável testemunho das gerações uma algaraviada sobre a qual já não há quem se entenda...
Referimo-nos agora — vá-se lá acreditar! — à senda que abriram os afoitos empreendedores da edição que, na esteira de Guttenberg, se dedicaram ao negócio dos livros e, depois de verem o mercado saturado de Bíblias e hagiografias e repletas as estantes de ciência eterna e crónicas encomiásticas, vendo agonizar os seus tipógrafos e os seus livreiros pelo pão nosso de cada dia, se lembraram um dia que havia novos mercados a navegar —
— ora, redescoberta a literatura, repescado o roman, inventado o autor, lançado "o véu da diáfana fantasia sobre a nudez crua da verdade", desenlatada a cornucópia dos géneros literários e inaugurada a corrida ao ouro dos "best sellers" — que mefistofélica entidade poderíamos nós ver sorrateiramente reemergir do mundo das trevas?
Nada mais, nada menos que a bizarra ideia da...
ficção literária.
•
As consequências profundas deste lento e metódico processo de "neutralização das narrativas" — leia-se, talvez mais claramente, de "subjectivização do simbólico" —, cujo crescimento conduziu à proliferação dos "mundos imaginários" e "universos paralelos" que actualmente movem multidões, começam a ser facilmente apreciáveis.
Neste momento, porém, não são estas que nos interessam, mas aquelas que, de tão sedimentadas já nos nossos hábitos mentais, nos passam despercebidas — vamos enumerar seguidamente apenas três:
A primeira consequência "dialéctica" (utilizaremos habitualmente esta cómoda designação de inspiração sobretudo hegeliana para designar os fenómenos de "ruptura conceptual" instigados pelo "revolucionarismo moderno") da "ficcionalização narrativa" de que falamos é a:
I
Cisão Subjectividade vs. Objectividade
Este tema tem sido sistematicamente abordado ao longo da nossa série de artigos, e a exaltação da subjectividade é transversalmente reconhecida como um dos pilares da Modernidade. As implicações desta cisão são extraordinariamente diversas. Agora só nos interessa uma: o "divórcio" Homem / Natureza.
A "indissolubilidade" da união do ser humano e do mundo que habita postulada pelas "Religiões do Livro" (muito particularmente, pelo Velho Testamento) é o seu alvo. O ser humano deixa de ser o "guardião" deste mundo, deixa de ser o medianeiro, a ponte, entre o "espírito vivo" e a "matéria inerte".
Para lá das implicações ontológicas da questão, há um resultado bastante pragmático que nos interessa: o "Mundo" deixa de ser um "local de passagem" a "preservar" para se tornar um depósito de recursos a inventariar e a explorar para benefício próprio.
Se este tema tem sido discutido até à exaustão entre os críticos da "sociedade capitalista avançada" de todos os quadrantes, culminando até, para gáudio de muitos dos Iluminados, nos delírios auto-punitivos de extremistas esquizofrénicos, já o seguinte tende a despertar a atenção de sectores muito mais reservados:
II
Cisão Imaginação vs. Ciência
Do ponto de vista epistemológico, trata-se do calcanhar de Aquiles de todos os cientismos contemporâneos — e no entanto, foi a mais directa das consequências da "invenção da literatura": colocar de um lado o "discurso onírico de místicos e literatos" (objectivamente fraco), e do outro "o discurso factual e metódico dos cientistas" (objectivamente forte).
Foi esta cisão que pretendeu arrasar com a "retórica metafórica dos alquimistas" (depois de já ter reduzido ao estatuto de "historinha de encantar" não só todo o discurso "religioso" como uma boa parte das ancestrais investigações filosóficas) em nome das magnas miragens do "conhecimento científico": a dedução, a indução e o método.
Para um público local arredio a tudo quanto não seja "ciência-pop" da TVCabo, abordar esta questão apenas pode relevar de perigosas "tendências reaccionárias e retrógradas". Ora, por "mero acaso", trata-se de um espinhoso problema ao qual se têm vindo a dedicar recentemente muitos projectos na área das ciências da cognição...
Mais modestamente, esperamos vir a ter oportunidade de abordar esta falsa dicotomia com algum pormenor. Para já, basta sublinhar que foi ela que veio reduzir o discurso científico ao da tecnociência, que veio reduzir o saber à técnica e que entre os ingénuos veio (re)introduzir o culto do número e da machina, ao mesmo tempo que conduzia ao esquecimento do ser (e isto de forma ainda bem mais profunda do que alertou Heidegger).
Finalmente, há uma terceira cisão bastante mais subtil, parcialmente abordada faz já alguns anos pela discussão (entretanto abolida) sobre as virtudes (ou não) da dita "sociedade de consumo":
III
Cisão Repetição vs. Inovação
De entre os lugares-comuns que sobressaem da Modernidade, este será talvez o que mais se enquistou não só junto da população local mais ou menos escolarizada, mas sobretudo entre a pretensa elite bem-pensante que no pós-25 de Abril se apoderou do "ortodiscurso" dos mass media da treta que tão confortavelmente se instalaram entre nós.
Ora, rezam os apologistas deste "progressismo", nada existe de mais funesto para o bem-estar do homem no mundo do que fazer o que os seus avós fizeram. E têm vindo a introduzir tanta sofisticação nesta doutrina que passaram a defender que nem sequer é bom para o indivíduo fazer o que viu fazer aos seus pais. Ou ainda mais eruditamente, para cada um mesmo, em si e para si, que nem deve conceber fazer hoje outra vez aquilo que ontem já fez...
Sucintamente, este consumismo compulsivo que de forma larvar se apoderou das mentes dos nossos concidadãos serve, pelo menos, três propósitos vitais para os Iluminados: por um lado, 1) mantém a machina produtiva no sempre regenerado movimento do compra-usa-e-deita-fora; por outro, 2) assegura-lhes que a insustentável torrente de novidades dificulta a cada um o manter-se ligado a qualquer coisa de estável; por último, 3) garante que tudo aquilo que ainda ontem se tinha como insofismável deve ser hoje substituído por outra "verdade muito mais avançada"...
Como vemos, é transversal esta axiologia da inovação — e de tal forma que nem sequer a Modernidade depende dela, nem de si mesma, mas apenas da sua capacidade de permanente metamorfose em qualquer outra coisa !
É este frenesi de mudança, é esta neomania, esta sede sempre de mais e de tudo que tem vindo a manter a sociedade Moderna numa corrida idiota procurando encontrar-se a si mesma, procurando morder a sua própria cauda como um cachorro angustiado pelo tédio...
E o paradigma estético deste estar autofágico é revelado pelos próprios ecrãs em frente dos quais nos encontramos sentados, desejando sempre mais ardentemente a nós mesmos, desejando cada vez mais insaciavelmente, mais repetitivamente, o próprio desejo.
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... E já vai longo este artigo. Provavelmente tão longo que já nem nos lembramos que o seu tema era a mistificação da religião, desta vez enquanto interpretada como vulgar narrativa fantástica... leviandade que — talvez já cansativamente — mais uma vez imputámos ao Iluminado...
Sendo assim, para compreendermos de vez este "bicudo problema da religião" talvez não nos falte mais do que perceber, de uma vez por todas...
"O Que É o Iluminismo?"
(à suivre...)
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o desejo do desejo e o eterno retorno do mesmo...
... ou a monotonia da velha religião autista
(ou ainda, e sempre mais, — "dá-nos soma, mamã")
Ian Dury & The Blockheads — Sex & Drugs & Rock'n'Roll (1977)
Sex and drugs and rock and roll
Is all my brain and body need
Sex and drugs and rock and roll
Are very good indeed
Keep your silly ways or throw them out the window
The wisdom of your ways, I've been there and I know
Lots of other ways, what a jolly bad show
If all you ever do is business you don't like
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Is very good indeed
Every bit of clothing ought to make you pretty
You can cut the clothing, gray is such a pity
I should wear the clothing of Mr. Walter Mitty
See my tailor, he's called Simon, I know it's going to fit
Here's a little piece of advice
You're quite welcome it is free
Don't do nothing that is cut price
You know what that'll make you be
They will try their tricky device
Trap you with the ordinary
Get your teeth into a small slice
The cake of liberty
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Sex, drugs, rock, roll, sex, drugs, rock, roll
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