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"As Cortes e a Constituição não são coisa nova nestes Reinos: são os nossos direitos e os dos nossos Pais." — in Manifesto da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, de 15 de Dezembro de 1820
... ou "Lamentamos este programa.
A interrupção seguirá dentro de momentos."
As violentas ondas de choque provocadas pelo terramoto que foi o resultado das recentes eleições presidenciais nos EUA, sobretudo porque ocorre poucos meses depois da não menos brutal erupção do Brexit, justificam plenamente uma pausa no nosso trajecto para lhe dedicarmos alguns momentos de reflexão.
Como não subscrevemos nem a linha editorial prefabricada dos media nem a histeria escandalizada dos activistas do pensamento único, preferimos pronunciar-nos à moda dos historiadores de antanho — ou seja, tendo dado aos eventos o tempo suficiente para nos oferecerem algo de substantivo, em lugar de nos tolherem a vista com a espuma dos dias.
Além disso, como não dispomos nem do tempo nem dos meios para uma meticulosa análise tratadística ou estatística, iremos limitar-nos a uns quantos conceitos-chave que, acreditamos, permitem lançar alguma luz sobre o paroxismo de irracionalidade em que se encontra mergulhada a vida política não só nos EUA como, em consequência, todo o Ocidente dito "democrático".
Não será este o lugar de os desenvolvermos em pormenor — o que nos interessa será apenas aproveitar o favorável contexto de "study case" que os eventos nos apresentam para os fazer sobressair na paisagem.
Para não fazermos perder tempo aos nossos leitores, avançamos sem mais demora.
1) Escola Nova e Autocondescendência
Em finais do século XIX, os engenheiros do império global aperceberam-se que apenas podiam corrigir o curso de uma história que até então não se tinha vergado aos seus habituais e revolucionários Idealismos Utópicos através de um dispositivo mais radical do que a guilhotina e a decapitação dos pensantes divergentes. Aparece assim, ainda em esboço, aquele processo que em meados do século seguinte haveria de se manifestar mais plenamente na Revolução Cultural da China Maoista.
Ora, o esboço que se coloca então em campo é, precisamente, o da pedagogia elementar. Uma vez que a meritocrática escola de elites se encontrava já dominada através da reformulação moderna do ensino académico, havia que passar a um modelo mais abrangente, que garantisse igualmente o controlo das massas, ou seja — do número. Tinham de lhe chamar... Escola Nova.
Se tivermos presente que este processo avança em paralelo com o da afirmação da psicologia como "ciência autónoma" com Sigmund Freud, talvez se torne mais clara a sua interpretação.
Os instrumentos a reter são os de princípio de prazer e princípio de realidade. E o fim a obter é o da manutenção do indivíduo no estado larvar de "infantilismo carente".
Como não nos podemos alongar no assunto, é suficiente reter que para garantir a manutenção do ser humano num estádio de submissão ao desejo e à gratificação imediata (o do "princípio de prazer"), tão útil para a afirmação da sociedade de consumo que se deseja promover, basta "respeitar nas crianças os seus interesses e as suas necessidades". Ou seja, valorizar-lhes uma "espontaneidade e confiança" que as apeguem às "zonas de conforto do animal doméstico": satisfação gratuita das necessidades e afago prazenteiro...
"Mundo real, para quê ???"
Esse dispositivo que alimenta nelas o sentimento ficcional de conforto é precisamente o mesmo que socialmente promove a instalação da mediocridade autocondescendente.
2) Emotividade e Autocomiseração
O indivíduo instalado, nutrido e louvado na sua própria esfera de auto-gratificação, ou seja, como dissemos acima, que vive na aurea mediocritas da autocondescendência é um indivíduo que recusa uma mediação com o mundo, ou seja, no fundo, a própria realidade alheia.
São precisamente o conforto da mediocridade e essa recusa do mundo que embotam o desenvolvimento de uma racionalidade crítica e autónoma e das próprias aptidões gerais de sobrevivência. Esse estado de carência generalizada, ou seja, de dependência infantil, cria o ambiente propício para que se desenvolva nele um sentimento de insegurança emocional. Corrresponde isto, do ponto de vista social, à instalação do primado da emotividade e da autocomiseração.
Mais uma vez, isso que podemos também designar como hipersensibilidade burguesa (pois se manifesta sobretudo em hiperprotegidos ambientes urbanos) é um estado desejável na sociedade de consumo alienada que se deseja impôr, atendendo a que favorece a manutenção dos indivíduos numa situação de carência generalizada e necessidade compulsiva.
3) Autocomplacência e Hedonismo Masturbatório
Encerrado na autocondescendência e na autocomiseração, dependente para quase tudo de instituições benévolas que lhe garantam a satisfação das necessidade mais elementares, apenas restam ao indivíduo os desafios da autocomplacência.
Trata-se agora da absolutização do princípio de prazer. Se na infância ele corresponde a uma situação de dependência real, torna-se depois na adultícia um objectivo de vida. Deparamo-nos, portanto, com um habitual "hedonismo"... a que se associam características muito específicas.
Se o hedonista adulto e autónomo se manifesta mais plenamente no plano orgiástico do confronto com a alteridade, o nosso adulto emocionalmente inseguro procura o prazer na esfera de uma identidade mais ou menos autista, ou seja, mais ou menos intimista e apaziguadora — de forma breve, vejam-se como exemplos a industrialização da pornografia e do jogo solitário (aos quais se associa o fácil "Restart"), a entronização da masturbação, da homossexualidade ou da monogamia serial, as ditaduras do gosto e a tribalização das modas, o pensamento único e a ditadura do politicamente correcto, a criminalização do pensamento divergente e o puritanismo liberal, os algoritmos de busca de informação reconfortante... enfim, toda a parafrenália de instâncias protectoras de uma subjectividade tornada hiper-sensível, incapaz de se medir com a adversidade.
Mais uma vez, os agentes da sociedade de consumo compulsivo florescem neste contexto, proporcionando vastos cardápios para a satisfação de todos os desejos, inclusive os mais secretos, no mais confortável ambiente do lar...
4) Estereotipação e Intolerância à Frustração
Este paradoxal ambiente de estereotipação da subjectividade irredutível, ou seja, de licença massificada, não passa do reflexo esquizofrénico de uma sociedade rendida aos autismos subjectivistas de cidadãos condicionados pelo consumismo compulsivo e autogratificante.
Destituídos de uma consciência social que vá além da indissolúvel garantia de satisfação das suas necessidades mais básicas — comes e bebes, sexo, segurança, entretenimento — e afastados de qualquer aspiração a uma autonomia económica, intelectual ou afectiva, os indivíduos tornaram-se presa fácil do paraíso proletarizante de produção—consumo que o demo-liberalismo lhes oferece em bandeja de prata.
Além disso, condicionados pelo diktat do quarto poder à exaltação delirante de um libertarismo anarquista e subjectivizante cujo horizonte não vai além das bebedeiras embrutecedoras das noites de fim-de-semana, estes "proletários por convicção" não passam, sem sequer o sonharem, dos cidadãos ideais de uma sociedade rendida aos interesses da alta finança.
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Pergunta de desenvolvimento
Um destes dois grupos de manifestantes representa violentos extremistas
antidemocráticos que põem em causa a paz mundial e o entendimento entre os povos.
Identifique-o e exponha publicamente num breve discurso as razões porque o censura.
Se sobreviveu, parabéns!!! Apresente imediatamente a sua candidatura a um órgão de
comunicação democrático de grande tiragem. Vai ver como será premiado!
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Em que não se trata do fim, nem do princípio do fim, mas sim — enfim ! —,
do fim do princípio. Como dizia o outro. E muito bem.
Depois de nos atolarmos entre as névoas do Iluminismo, as águas turvas do Esclarecimento e o lamaçal da transcendentalidade e de a fogueira das paixões alheias nos empurrar para o derradeiro conforto das promessas utópicas, bem nos poderemos interrogar sobre o interesse desta nossa excursão...
Afinal, não temos a presunção de encontrar por aí um único inconformado que tenha deixado de se sentir solidário com os desígnios do Mestre e de se manter agarrado à convicção de que se a via para a Iluminação é realmente tão tortuosa, isso apenas se poderá dever àquele obscurantismo e apego à servidão em que culposamente vivem todos os ignorantes.
De resto, até nós somos obrigados a reconhecer que o eficaz dispositivo de sedução que Kant seleccionou como portal do seu monumento não é um adversário cujo valor se aproxime sequer minimamente ao mais decrépito dos arcanos...
É perante esta sensação de futilidade crítica que nos vemos obrigados, portanto, a abandonar o microscópio e regressar ao mundo tal como se dá...
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Embora já tivessemos apresentado alguns indícios nesse sentido, eis chegado o momento próprio para retirar as justas consequências de o presente opúsculo de Kant não se dever obviamente a nenhuma intuição particular do autor nem exprimir qualquer intenção que lhe fosse específica. Bem pelo contrário, esta sua obra enquadra-se com a maior precisão num estereotipo mais vasto que agitava na época a Europa inteira — o da Revolução Providencial que a deveria transportar da era do "Despotismo" para a era do Estado-Nação Liberal.
E é exactamente esse movimento subversivo que o nosso Prussiano autor pretende legitimar perante o seu público.
Ou melhor — que ele já nem sequer necessitava legitimar, uma vez que a aspiração à autonomia se encontrava transversalmente assimilada por importantes estratos da sociedade civil da época (e neles incluímos, como é evidente, todos os nossos amigos burgueses "devoradores de jornais")... Sendo assim, bastava-lhe essencialmente canalizá-la, ou seja, orientá-la devidamente.
E é na atenção prestada a esta orientação que sobressai o método da Modernidade, que desde o início temos vindo a apontar — se nas Ilhas Britânicas o "problema" fora discretamente resolvido depois do banho de sangue patrocinado por Cromwell, já em França os petulantes Bourbons preferiam acreditar que a Esclarecida simpatia dos engenheiros iria durar para sempre ou, no caso contrário, que até poderiam passar muito bem sem ela...
Porém, no ano de 1784, aquele em que Kant publica o panfleto que temos debaixo dos olhos, o descalabro financeiro do Despotismo Esclarecido gaulês, definitivamente rendido às virtudes do imperialismo centralista mas renitente em abdicar das prerrogativas discricionárias na gestão do Tesouro e minado pela incapacidade de mutualizar a dívida através da adopção do imposto universal em virtude das isenções e franquias que o soberano continuava a dispensar aos quatro ventos, anunciava já o dobrar a finados sobre o trono de S. Luís...
Perante a anunciada bancarrota, nas tipografias, nos cafés e nos boudoirs de Paris os poderes obscuros, a fúria revanchista e a dissolução moral abraçavam-se amorosamente na utopia das utopias: o Império da Razão que prometia fazer jorrar o maná de leite e mel da boca das escopetas...
Ora, perante o frenezim de sangue que agitava as margens ocidentais do Reno e a verve incendiária que jorrava das penas dos enciclopedistas, o nosso Autor até se deixava tranquilamente colocar no pusilânime papel de um qualquer cabotina bota-de-elástico...
— É que, ao contrário do que se passava em Versalhes, para as bandas de Berlim e Königsberg os Fredericos gostavam de se apresentar como "bons alunos", e a cibernética preparava-se já para um grau de sofisticação muito mais apurado...
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Podemos, assim, regressar pela última vez à devassa das camadas de sentido da primeira parte deste nosso obscuro texto — e agora para lhe apontar uma das facetas políticas da famosa "Revolução Copernicana" de Kant que é por demais evidente, embora raramente mereça a atenção devida:
O objectivo primordial da luta pelo poder deve
deslocar-se da conquista violenta dos seus centros
de exercício para incidir sobretudo no controlo
das respectivas bases de apoio.
Colocando a questão de forma mais figurada, para que melhor se perceba, o nosso filósofo tem discretamente vindo a sugerir àqueles que o sabem ouvir que, em lugar de armar exércitos contra os "Reis-Sóis" ou os "Astros-Reis" que brilham no centro do Cosmos, seria muito mais eficaz usar os recursos para dirigir os errantes até "novas órbitas"...
Ou seja — que em lugar de assestar baterias contra os guardiões do status quo e os seus potentados (leia-se, por um lado, a realeza, e por outro, o clero e a nobreza), ficaria a revolução muito mais bem servida se os respectivos arautos se dedicassem a minar o espírito dos povos até então mais ou menos submissos às autoridades vigentes.
Significa isto que procura instalar definitivamente no equilíbrio das relações de poder das sociedades europeias o primado da luta política, ou seja, o primado da luta pela interioridade das consciências através das ideologias. O mesmo é ainda dizer que lança o germe da democracia representativa no âmago das sociedades Ocidentais.
Ora, é este tema que irá sem dúvida reclamar a fatia de leão das nossas futuras reflexões, mas neste momento podemos afirmar com alguma segurança que se até ao advento do Iluminismo se tinha vindo lentamente a impor na Europa Cristã o primado das comunidades políticas enquanto comunidades de valores — ou seja, de comunidades que partilham a fidelidade a uma religião e a um conjunto de normas estruturantes comuns a todos os seus membros activos (sem que deixassem de coexistir no seu seio as comunidades separadas) —, a novidade que se instala nos espíritos deslumbrados pela modernidade é a de que a comunidade política não passa de uma associação arbitrária de cidadãos abstractos condicionados pelo nascimento em territórios geograficamente bem delimitados e em meios sócio-economicos precisos.
É este trânsito de uma cultura definida por territórios afectivos — destituídos dos precisos limites impostos pelas fronteiras imaginárias rabiscadas sobre papel nos gabinetes dos burocratas — e por ordens sociais professas — aquelas em que, embora partindo de uma base, sem dúvida, predominantemente hereditária, a filiação se acaba por conformar às vivências e opções particulares dos indivíduos concretos — para uma outra cultura enformada pelas ideias de territórios geográficos meramente abstractos e de classes sociais de características eminentemente económicas — ou seja, uma cultura dotada de bases abstractas, mensuráveis e quantitativas — que autoriza a instalação do Estado-Nação Liberal e das suas indispensáveis massas anónimas.
Doravante desencarnado e convertido num átomo estatístico, o indivíduo vai tornar-se ele próprio o campo de batalha em que se decide a sorte dos impérios. Subtraído à sua esfera de pertenças concretas — sejam elas materiais ou espirituais — irá ocupar a posição de alvo principal de uma guerra intelectual cujo objectivo assumido é a revolução interior.
Neste complexo processo cujo desenlace continuamos a aguardar nos dias que correm, é o homem que se encontra em liça contra si próprio — agora já sem heróis, sem paladinos, sem santos nem sábios que o guiem, o acompanhem ou o armem sequer na refrega...
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Mas avançamos demais !
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No contexto em que Kant se encontra, ainda há lugar para voluntarismos... e é exactamente o papel tutelar que reivindicam os filósofos... É o protagonismo na entediante liderança das massas que pretendem usurpar ao clero.
Em suma: a promessa da primeira meia-dúzia de linhas do texto que tanto nos tem ocupado é a de que em lugar de desbaratar recursos em Revoluções "à francesa", em lugar de perder tempo em arengas contra a Religião, o Poder dos poderes mais não terá do que confiar nos filósofos para reformar o espírito dos povos...
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Nos finais do século XVIII, uma destas modas do Despotimo Iluminado
já tinha passado à história e os seus costureiros ainda
não tinham percebido porquê...
— Diga o leitor qual das duas é muito mais janota e capaz de o fazer perder a cabeça.
Justifique numa composição de meia-dúzia de linhas, usando o acordo ortográfico em vigor.
E parabéns! Se acertou na resposta, poderá candidatar-se ao sorteio de um diploma
de acesso ao exercício de cargos políticos na lojinha mais próxima !!!
(Não confundir com "licenciatura académica", p.f.)
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