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"As Cortes e a Constituição não são coisa nova nestes Reinos: são os nossos direitos e os dos nossos Pais." — in Manifesto da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, de 15 de Dezembro de 1820
Um dos mais insistentes desígnios dos Modernos dirige-se contra todos aqueles núcleos de inteligibilidade em que se firma a coesão de qualquer comunidade orgânica, e é nesse importante fenómeno que reside todo o seu paradoxo — pois onde dizem eles que iluminam, obscurecem, onde dizem que libertam, submetem, onde dizem que elevam, aviltam, e onde dizem que promovem, fazem retroceder...
Em suma, de cada vez que se ouve a voz de um Moderno (e hoje são quase todas) afirmar uma boa intenção — convém por sistema decifrar a perversão que nela se oculta...
Vem isto a propósito do relativismo sobranceiro, do laicismo, do agnosticismo e até do ateísmo militantes que se tornaram muito recentemente apanágio de uma vanguarda da tecnociência que (mais uma vez) se quer autopromover aos píncaros da racionalidade... "ilustrada".
Com frequência, estes aprendizes de feiticeiro de formação dita "científica" pretendem fazer radicar o seu "esclarecimento" em ideias vagas associadas ao exponencial progresso técnico, económico, social, ... que viria pautando a história da humanidade sobretudo desde o alvor da sacrossanta Revolução Francesa.
Convém desde já esclarecer que grande parte dessas ideias resulta essencialmente de uma mão-cheia de lugares-comuns histórico-filosóficos adquiridos no curto período de exposição às "humanidades" a que todos somos submetidos durante a necessária passagem pelo ensino obrigatório e das doses cavalares de séries de "ciência-espectáculo" que actualmente preenchem a parte de leão das grelhas do telelixo que nos é debitado via TV Cabo, depois sabiamente decantadas em meia dúzia de jornalecos da treta...
Como não nos vamos deter agora numa exposição detalhada deste paleo-novel "espírito científico", basta-nos sublinhar que os seus tópicos gravitam em torno de uma massa colossal de materialismo ingénuo envolta por uma casquinha dourada de Darwinismo for dummies e uma pitada de positivismo Comtiano (este é mais facilmente assimilável do que a versão neo), tudo isto devidamente acompanhado por uma boa dose de lógica da batata pragmática...
Preferimos passar directamente à constatação de que para estes iluminados uma das mais elementares antíteses civilizacionais é aquela que opõe
CIÊNCIA vs. RELIGIÃO
(tão óbvia — não é?).
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Chegados aqui, bem poderíamos desligar o computador, contemplar languidamente através da janela o longínquo horizonte (hoje assaz soalheiro) e passar o resto da tarde estendidos ao sol, idealizando a estrutura um genialíssimo tratado sobre esta matéria que tão dolorosamente nos dilacera...
... ou então, saltar directamente lá para as bandas de 1789 e apreciar brevemente como conseguiram os nossos filantropos amigos baralhar-nos de tal maneira o esquema...
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Ora, de entre as coisas que convém ter presente quando nos dedicamos a apreciar um dos mais excruciantes eventos deste nosso deambular pelo mundo é que nos derradeiros lustros do século XVIII o conceito de "religião" estava ainda muito longe de se confinar àquela espécie de "bizarria psicótica de retardados" que os apóstolos da tecnociência gostam agora de parodiar... Embora os Republicanos Laicos e Socialistas tenham actualmente alguma repugnância em o admitir, uma das maiores preocupações dos seus congéneres da época foi precisamente a de instalar... a sua nova religião:
o culto de la Déesse Raison...
... sem esquecer sequer que os próprios "ateus" da altura não desdenhavam louvar as incomensuráveis virtudes desse... Ser Supremo...
Aliás, em boa verdade, só a linhagem de néscios "ateus nihilistas" que começou a florescer bastante mais tarde — exactamente como consequência do grosseiro fiasco da tentativa de reescrever a Ordem do Mundo pela geração de '89 — parece ignorar que muitos daqueles que nos dias hoje publicamente se vangloriam de professar "o mais saudável agnosticismo" continuam a depositar o dízimo aos pés do seu discreto Ser Supremo por trás de portas fechadas...
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Atendendo a que o banho de sangue que trouxeram o Terror, o Consulado e o Império acabou por mostrar aos gauleses as verdadeiras garras dessa Razão Divinizada e os delírios deístas a que sempre esteve associada não passaram de especiosos artifícios de auto-refutação, restava apenas aos Iluminados de linhagem continental o desesperado refúgio na Razão Ateia para se fazerem valer entre as populações precavidas contra a sua já ineludível demagogia filantrópica...
Torna-se assim muito fácil começar perceber como as derivas especulativas do século XIX encontram parte da sua origem na estrondosa derrota da Nova Ordem perante as "lições dos egrégios avós" e no desmascarar das falsas promessas dos modernos aprendizes de feiticeiro pelas incontornáveis lições da Religião de Todos os Tempos...
... e quais os motivos que presidiram ao acintoso divórcio entre a "ciência" e a "religião".
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Permanece apenas por esclarecer em que consiste aquele conceito de "religião" que tão claro era ainda para os nossos avoengos de todos os partidos e que os Modernos, no seu afã de evadir a derrota final, tudo fizeram (e continuam a fazer) por confundir ---
Ao contrário do que nos querem fazer crer esses contumazes depositários da falsa ciência, "religião" é um conceito que só marginalmente pode ser associado a qualquer crença sobrenatural, doutrina esotérica, culto da transcendência, rito, mito, misticismo, superstição ou fantasmagoria...
Ou melhor: — os contumazes depositários da falsa ciência apenas pretendem colar o conceito de "religião" a crenças sobrenaturais, doutrinas esotéricas, cultos da transcendências, ritos, mitos, misticismos, superstições e fantasmagorias para que deixemos de considerar aquilo para que ele genuinamente remete:
o conjunto de valores partilhados que está na origem de qualquer sociedade
ponto.
É esta mistificação da religião que realizam os Modernos que permite transformar o Cristianismo numa espécie de delírio esquiozofrénico de Evangelistas e Apóstolos, relegando para a obscuridade a respectiva ontologia e axiologia.
É esta mistificação da religião que lhes permite equiparar todas as religiões, como se fossem neutrais as estruturas ontológicas e axiológicas que cada uma delas organicamente encerra.
É esta mistificação que lhes permite sobrevalorizar as éticas ideológicas abstractas face às axiologias concretas das religiões — as primeiras como pretensos frutos da volição racional e as segundas como suposto produto de mitos delirantes e irracionais.
É, finalmente, esta mistificação que lhes permite desagregar todas as comunidades orgânicas, fazendo-lhes crer que os valores em que tradicionalmente radicam não passam de ingénuas fantasias, muito vantajosamente substituídas por uma panóplia de ideologias à medida de cada ser isolado.
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Assim nos fazem esquecer que toda a ideologia encerra em si mesma uma religião abstracta — isto é, um conjunto de valores centrais que pretende impôr independentemente de toda a experiência.
Tal como se nos obscurece o espectro daquela Nova Religião segundo a qual o ser humano se deve submeter aos valores do mais abstracto pragmatismo — a Religião da Tecnociência, ou mais fundamentalmente ainda, como nos começa a ser dado ver a cada dia que passa: a da Teociência...
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Uma celebração ateia à porta fechada... ou porque lhes faz tanto jeito o Estado laico
(Eyes Wide Shut, de Stanley Kubrick)