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"As Cortes e a Constituição não são coisa nova nestes Reinos: são os nossos direitos e os dos nossos Pais." — in Manifesto da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, de 15 de Dezembro de 1820
Depois de conceptualmente erradicar a religião do seu lugar central nas sociedades enquanto instituição depositária dos respectivos valores estrutrantes e entregar as suas funções naquela abstracta área do saber que viria a designar como "ciência política / direito constitucional" ou coisa que o valha, o Iluminismo encontrava lançadas as bases da desmontagem do "Ancien Régime".
Resgatadas as Utopias dos velhos mestres e lançado o "concurso de ideias" para a concepção "da mais excelente Sociedade Ideal" — leia-se, "da mais sedutora ideologia" —, pareceu obnubilar-se da mente de todos intelectuais de vanguarda a constatação básica de que jamais se viu sobre o chão deste mundo uma única sociedade digna de memória que não estivesse assente sobre um conjunto de valores considerado sagrado e digno de culto ritual (ou seja, de reactualização periódica)...
... isto desde as mais pragmáticas teocracias do Extremo Oriente, das quais ainda nos sobra o exemplo vivo nipónico, às mais remotas civilizações da Antiguidade, seja ela arcaica ou greco-romana, assim como a todas as sociedades que se lhes seguiram — com a muito recente (e suposta, convém admitir) excepção URSS de Lenine e Estaline e todas as sanguinárias experiências (mais uma vez, supostamente) ateias a que deu origem.
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Repetimos — esta evidência incómoda só parece escapar aos nossos intelectuais de vanguarda que, como vimos anteriormente, se vão escudando numa espécie de Hegelianismo ou Comtismo ingénuos (e cujo deísmo parece ficar então autojustificado), ou num ainda mais básico Darwinismo social cujas genuínas consequências bio-psico-sociais se esforçam por manter na penumbra (veja-se o esclarecedor caso de James Watson)...
Contudo, é necessário perceber que estes periclitantes refúgios da ignorância apenas vão aparentando alguma sustentabilidade ingénua — "intuitiva" — porque são resultado de um outro fenómeno de mistificação religiosa já atrás também referido mas que passamos seguidamente a esclarecer.
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Como vimos, depois de subtrair a axiologia e a ética da esfera da religião para as depor aos pés da ciência política, restava ao Iluminismo catalogar a religião como "apenas mais um tipo de esquizofrenia delirante" ou, para não perturbar os menos ignorantes, outra manifestação daquela "tendência natural do humano para as narrativas explicativas de carácter fantástico" — isto é, daquele fundo mítico, místico e mágico que em que assentam geralmente as culturas.
Ora esta atrevida manobra, tomada com rigor sistemático sobretudo a partir de Kant, apresentava diversas vantagens: além de colocar todo o fenómeno religioso sob a alçada da história e, consequentemente, toda a ordem fenoménica sob a alçada da razão pura, entregava por atacado todo o depósito das Escrituras aos estudiosos da literatura...
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Curiosamente, é precisamente neste particular que devemos manifestar a maior condescendência para com os Iluminados, pois em boa verdade eles mais não fizeram do que emular uma triste tendência...
E não, não nos referimos àquela que inauguraram os teólogos especulativos que desde a noite dos tempos nos vêm preleccionando acerca do Absoluto como se fosse o mais insignificante apontamento de agenda... Quanto a estes, talvez lhes venhamos a dedicar umas linhas um dia...
Nem nos referimos também à dos saudosistas do classicismo greco-romano (e de outras coisas bem menos clássicas), com a pretensão de desenterrar do passado a ciência retrógrada dos impérios caídos...
Não nos referimos sequer às outras dos prosélitos das seitas protestantes, cuja patética reivindicação ao "livre-exame" acabou por fazer do inestimável testemunho das gerações uma algaraviada sobre a qual já não há quem se entenda...
Referimo-nos agora — vá-se lá acreditar! — à senda que abriram os afoitos empreendedores da edição que, na esteira de Guttenberg, se dedicaram ao negócio dos livros e, depois de verem o mercado saturado de Bíblias e hagiografias e repletas as estantes de ciência eterna e crónicas encomiásticas, vendo agonizar os seus tipógrafos e os seus livreiros pelo pão nosso de cada dia, se lembraram um dia que havia novos mercados a navegar —
— ora, redescoberta a literatura, repescado o roman, inventado o autor, lançado "o véu da diáfana fantasia sobre a nudez crua da verdade", desenlatada a cornucópia dos géneros literários e inaugurada a corrida ao ouro dos "best sellers" — que mefistofélica entidade poderíamos nós ver sorrateiramente reemergir do mundo das trevas?
Nada mais, nada menos que a bizarra ideia da...
ficção literária.
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As consequências profundas deste lento e metódico processo de "neutralização das narrativas" — leia-se, talvez mais claramente, de "subjectivização do simbólico" —, cujo crescimento conduziu à proliferação dos "mundos imaginários" e "universos paralelos" que actualmente movem multidões, começam a ser facilmente apreciáveis.
Neste momento, porém, não são estas que nos interessam, mas aquelas que, de tão sedimentadas já nos nossos hábitos mentais, nos passam despercebidas — vamos enumerar seguidamente apenas três:
A primeira consequência "dialéctica" (utilizaremos habitualmente esta cómoda designação de inspiração sobretudo hegeliana para designar os fenómenos de "ruptura conceptual" instigados pelo "revolucionarismo moderno") da "ficcionalização narrativa" de que falamos é a:
I
Cisão Subjectividade vs. Objectividade
Este tema tem sido sistematicamente abordado ao longo da nossa série de artigos, e a exaltação da subjectividade é transversalmente reconhecida como um dos pilares da Modernidade. As implicações desta cisão são extraordinariamente diversas. Agora só nos interessa uma: o "divórcio" Homem / Natureza.
A "indissolubilidade" da união do ser humano e do mundo que habita postulada pelas "Religiões do Livro" (muito particularmente, pelo Velho Testamento) é o seu alvo. O ser humano deixa de ser o "guardião" deste mundo, deixa de ser o medianeiro, a ponte, entre o "espírito vivo" e a "matéria inerte".
Para lá das implicações ontológicas da questão, há um resultado bastante pragmático que nos interessa: o "Mundo" deixa de ser um "local de passagem" a "preservar" para se tornar um depósito de recursos a inventariar e a explorar para benefício próprio.
Se este tema tem sido discutido até à exaustão entre os críticos da "sociedade capitalista avançada" de todos os quadrantes, culminando até, para gáudio de muitos dos Iluminados, nos delírios auto-punitivos de extremistas esquizofrénicos, já o seguinte tende a despertar a atenção de sectores muito mais reservados:
II
Cisão Imaginação vs. Ciência
Do ponto de vista epistemológico, trata-se do calcanhar de Aquiles de todos os cientismos contemporâneos — e no entanto, foi a mais directa das consequências da "invenção da literatura": colocar de um lado o "discurso onírico de místicos e literatos" (objectivamente fraco), e do outro "o discurso factual e metódico dos cientistas" (objectivamente forte).
Foi esta cisão que pretendeu arrasar com a "retórica metafórica dos alquimistas" (depois de já ter reduzido ao estatuto de "historinha de encantar" não só todo o discurso "religioso" como uma boa parte das ancestrais investigações filosóficas) em nome das magnas miragens do "conhecimento científico": a dedução, a indução e o método.
Para um público local arredio a tudo quanto não seja "ciência-pop" da TVCabo, abordar esta questão apenas pode relevar de perigosas "tendências reaccionárias e retrógradas". Ora, por "mero acaso", trata-se de um espinhoso problema ao qual se têm vindo a dedicar recentemente muitos projectos na área das ciências da cognição...
Mais modestamente, esperamos vir a ter oportunidade de abordar esta falsa dicotomia com algum pormenor. Para já, basta sublinhar que foi ela que veio reduzir o discurso científico ao da tecnociência, que veio reduzir o saber à técnica e que entre os ingénuos veio (re)introduzir o culto do número e da machina, ao mesmo tempo que conduzia ao esquecimento do ser (e isto de forma ainda bem mais profunda do que alertou Heidegger).
Finalmente, há uma terceira cisão bastante mais subtil, parcialmente abordada faz já alguns anos pela discussão (entretanto abolida) sobre as virtudes (ou não) da dita "sociedade de consumo":
III
Cisão Repetição vs. Inovação
De entre os lugares-comuns que sobressaem da Modernidade, este será talvez o que mais se enquistou não só junto da população local mais ou menos escolarizada, mas sobretudo entre a pretensa elite bem-pensante que no pós-25 de Abril se apoderou do "ortodiscurso" dos mass media da treta que tão confortavelmente se instalaram entre nós.
Ora, rezam os apologistas deste "progressismo", nada existe de mais funesto para o bem-estar do homem no mundo do que fazer o que os seus avós fizeram. E têm vindo a introduzir tanta sofisticação nesta doutrina que passaram a defender que nem sequer é bom para o indivíduo fazer o que viu fazer aos seus pais. Ou ainda mais eruditamente, para cada um mesmo, em si e para si, que nem deve conceber fazer hoje outra vez aquilo que ontem já fez...
Sucintamente, este consumismo compulsivo que de forma larvar se apoderou das mentes dos nossos concidadãos serve, pelo menos, três propósitos vitais para os Iluminados: por um lado, 1) mantém a machina produtiva no sempre regenerado movimento do compra-usa-e-deita-fora; por outro, 2) assegura-lhes que a insustentável torrente de novidades dificulta a cada um o manter-se ligado a qualquer coisa de estável; por último, 3) garante que tudo aquilo que ainda ontem se tinha como insofismável deve ser hoje substituído por outra "verdade muito mais avançada"...
Como vemos, é transversal esta axiologia da inovação — e de tal forma que nem sequer a Modernidade depende dela, nem de si mesma, mas apenas da sua capacidade de permanente metamorfose em qualquer outra coisa !
É este frenesi de mudança, é esta neomania, esta sede sempre de mais e de tudo que tem vindo a manter a sociedade Moderna numa corrida idiota procurando encontrar-se a si mesma, procurando morder a sua própria cauda como um cachorro angustiado pelo tédio...
E o paradigma estético deste estar autofágico é revelado pelos próprios ecrãs em frente dos quais nos encontramos sentados, desejando sempre mais ardentemente a nós mesmos, desejando cada vez mais insaciavelmente, mais repetitivamente, o próprio desejo.
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... E já vai longo este artigo. Provavelmente tão longo que já nem nos lembramos que o seu tema era a mistificação da religião, desta vez enquanto interpretada como vulgar narrativa fantástica... leviandade que — talvez já cansativamente — mais uma vez imputámos ao Iluminado...
Sendo assim, para compreendermos de vez este "bicudo problema da religião" talvez não nos falte mais do que perceber, de uma vez por todas...
"O Que É o Iluminismo?"
(à suivre...)
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o desejo do desejo e o eterno retorno do mesmo...
... ou a monotonia da velha religião autista
(ou ainda, e sempre mais, — "dá-nos soma, mamã")
Ian Dury & The Blockheads — Sex & Drugs & Rock'n'Roll (1977)
Sex and drugs and rock and roll
Is all my brain and body need
Sex and drugs and rock and roll
Are very good indeed
Keep your silly ways or throw them out the window
The wisdom of your ways, I've been there and I know
Lots of other ways, what a jolly bad show
If all you ever do is business you don't like
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Is very good indeed
Every bit of clothing ought to make you pretty
You can cut the clothing, gray is such a pity
I should wear the clothing of Mr. Walter Mitty
See my tailor, he's called Simon, I know it's going to fit
Here's a little piece of advice
You're quite welcome it is free
Don't do nothing that is cut price
You know what that'll make you be
They will try their tricky device
Trap you with the ordinary
Get your teeth into a small slice
The cake of liberty
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Sex and drugs and rock and roll
Sex, drugs, rock, roll, sex, drugs, rock, roll
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