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"As Cortes e a Constituição não são coisa nova nestes Reinos: são os nossos direitos e os dos nossos Pais." — in Manifesto da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, de 15 de Dezembro de 1820
" Resposta à questão: — O que é o Iluminismo ? "
Não existe vilania mais bem descrita neste mundo do que aquela que resolveram dar pelo nome de "Iluminismo" — sobretudo porque tanto os seus desígnios como os seus métodos foram desde os primeiros passos amplamente expostos pelos seus próprios apaniguados.
De entre estes avulta o nome de Immanuel Kant, o mais incontornável dos filósofos idealistas, que nos distinguiu exactamente com o óbolo de um curto e luminoso artigo cujo título coincide precisamente com o que escolhemos para epigrafar estas nossas incomparavelmente mais obscuras linhas.
Contudo, e de forma ainda mais interessante, é notável como entre os expoentes da intelligenzia local pós-Abrilista, esse texto de Kant que na sua bonomia pré-revolucionária e pré-imperial antecipa já o sonoro eco da preta botifarra prussiana esmagando sob a pesada sola os minguados rebentos de uma Europa calcinada pelas revoluções das revoluções, continua a ser aplaudido enquanto "um dos mais contundentes apelos ao exercício autónomo da razão, à liberdade de pensamento".
Como, contrariamente a estes espíritos tão esclarecidos, não dispomos do privilégio da interpretação autocomplacente, iremos dedicar-nos à ingrata tarefa de analisar o célebre texto em pormenor. Sim. O nosso obscurantismo a tal nos obriga. Felizmente, as suas linhas são poucas e uma das versões rendida a vernáculo encontra-se graciosamente aqui — mais um gesto de profunda filantropia de um dos lídimos representantes das nossas elites contemporâneas. Aqui registamos o nosso "muito obrigado".
E deixemo-nos de vãs palavras...
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Mais uma vez...
" Resposta à questão: — O que é o Iluminismo ? "
(a partir do texto homónimo de Immanuel Kant, 1784)
1. "lluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado."
— É com este bombástico libelo que o nosso autor inicia o seu esclarecimento. Em duas penadas lhe traça o cenário, envergando desde já uma toga: a de ACUSADOR DO HOMEM.
— Quanto ao delito de que se trata, o cidadão apontado como culpado encontra-se praticamente como K. (esse outro "K." — do Processo de Kafka; e assim, também desde o início, distinguimos nós na nossa vereda o espectro de uma bárbara trindade de "Ks"...): está liminarmente afastado do processo em que é réu — será julgado à revelia, sendo notificado da culpa mas não sendo informado sequer de local onde apresentar a sua defesa...
2. "A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem."
— Neste segundo período, talvez para aliviar a perplexidade do réu desatento, o autor tem a bondade de lhe revelar que quando utilizou o termo "menoridade" não foi com nenhuma intenção metafórica, estilística ou de remissão para uma conotação menos comum. Não. Ele faz-nos o favor de sublinhar que se coloca num registo assaz literal — e nós próprios temos de o interiorizar, uma vez que a perplexidade desponta já com algum vulto... Definição: o menor é o incapaz de se servir do entendimento sem a orientação de outrem...
— Note o réu desatento que a legislação portuguesa, por exemplo, é bastante mais comedida nas suas ilações, assumindo que a "menoridade" é um estatuto eminentemente convencional, atribuído ao sujeito apenas em função da idade (Código Civil português, art.º 123); além disso, por curiosidade, está estreitamente associada a um estatuto de inimputabilidade (Código Penal português, art.º 19)... Pelo seu lado, o nosso autor é lapidar. Afinal, este pequeno artigo é já uma obra de maturidade. Ufano da sua Crítica da Razão Pura (1781), pode dar-se a esta sobranceria dogmática. E nós só registamos o facto porque, como é habitual nos Iluminados, se parte sempre de camufladas petições de princípio... ou seja, porque para nós que nos movemos já faz algum tempo nestas veredas, nunca há nada de menos óbvio do que as muito modernas evidências de senso comum...
— Portanto, seguindo nós metodicamente, vamos fazer nós mesmos o necessário ponto da situação (uma vez que embora só tendo avançado duas linhas, o grande Kant já nos deixou na esfera da mais pura retórica delirante): então, para já...
"O Iluminismo é a saída do homem da sua incapacidade de se
servir do entendimento sem a orientação de outrem, incapacidade essa
de que ele próprio é culpado."
— Para a rapaziada mais exaltada que ouve estas coisas nos corredores das escolas entre duas sessões de estouvada folia nos intervalos das aulas, ou seja, para os deslumbrados da promessa de liberdade rebelde que lhe trazem as luzes, o que demais encontramos nestas duas singelas linhas não passa de um soberbo apelo à "autonomia da razão"...
3. "Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não residir na carência de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo, sem a guia de outrem."
— Quando tudo parecia indicar que a ufania de Kant o iria levar numa direcção próxima da do seu precursor Descartes, postulando uma universalidade actual do entendimento em todos os homens (atendendo a que a Crítica da Razão Pura é uma genética sem genealogia, isso não seria de todo despropositado...), eis que nos mostra um pouco mais de discernimento e nos apresenta uma excepção para aquelas pobres almas mal aferidas (psiquicamente anormais, diríamos hoje, tal como o nosso Código Penal no seu art.º 20, curiosamente ainda sobre a questão da inimputabilidade), aquelas pobres almas mal aferidas, dizíamos, nas quais, afinal, até reconhece existir uma carência totalmente desculpável.
— Quanto aos outros, aqueles menores que apontava de início, — a quase totalidade deles simples réus distraídos —, lança sobre eles o anátema da indecisão e da cobardia como única justificação plausível para não "se libertarem desse alguém que os guia" e que ainda nem percebemos muito bem quem possa realmente ser...
— Porém, para nós que já sabemos que se conclui aqui o libelo do autor, resta-nos fazer um novo ponto da situação, clarificando novamente a tese que ele mesmo se propõe defender:
"O Iluminismo é 1) a saída dos homens da sua incapacidade de se servirem
do entendimento sem a orientação de outrem, 2) incapacidade de que eles próprios
são culpados quando se encontram na plena posse dessa mesma faculdade
de entendimento e 3) não se servem dela por indecisão ou cobardia."
— No que toca ao sector mais libertário da nossa intelligentzia local, esta tese simplesmente continua a equivaler ao mais sublime apelo à autonomia da razão, embora com tanto matraquear, sentimos que fervilha já nela o sangue na guelra, expectante de uma arrasadora investida sobre as primeiras "forças da autoridade" que lhe apareçam à frente...
— Quanto a nós, o cheiro a esturro é cada vez mais intenso... Para um espírito genuinamente metódico, a proposição que acima assinalámos com o número 1) seria suficiente para responder à questão colocada em epígrafe de forma estritamente argumentativa, geométrica até...
— Portanto, porque lhe associará o nosso famoso idealista transcendental as intimidatórias proposições número 2) e 3) ??? Prossigamos com a circunspecção que se impõe...
4. "Sapere aude ! [lat.: "Ousa saber !"] Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento ! Eis a palavra de ordem do Iluminismo."
— E é assim que termina o primeiro parágrafo o nosso autor... Para alguém que costuma ser apresentado como um dos mais notáveis expoentes do rigor dedutivo e do fino espírito analítico, parece que não estaria nos melhores dias... Então não é que fica agora claramente exposta a intenção da inclusão das proposições intimidatórias na sua tese ???
— Com efeito, o nosso paladino da razão decide iniciar a sua exposição do Iluminismo não com uma sólida tese isenta de falácias, mas com um desprezível apelo a motivos !!!
— Se nos três primeiros períodos não deixou de intimidar o leitor com o opróbrio da culpa cobarde, lança-lhe agora o repto da ousadia, o apelo ao reconhecimento de uma palmadinha nas costas filantropicamente oferecida pelo erudito dos eruditos... Percebemos então que não estamos no âmbito de uma filosofia das razões mas sim de uma filosofia dos motivos (mais uma vez, dois daqueles conceitos que a modernidade adora confundir...).
Sapere aude ! Avante camarada !
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Longe da aridez esotérica da Crítica, encontramo-nos agora, portanto, no exotérico domínio da emotividade e do apelo às (sempre "boas") intenções.
Ninguém lê a Crítica da Razão Pura. No máximo, é uma coisa que se vai lendo. Aqui estamos no registo pop do panfleto — e é precisamente nesta arena que se mostra o homem completo. Afastado da frigidez geométrica da análise, o homem é aqui razão e paixão. Aliás, tem de ser sobretudo paixão — pois é só essa a linguagem que compreende o profano.
Encontramo-nos, portanto, no registo da(s) ideologia(s), no permanente apelo à empolgação dos motivos (e dos sentidos), na carga furiosa contra o outro, perante aquela luz que cega e empolga.
Não se pense, contudo, que o panfleto é vulgar literatura de cordel. Absolutamente ! Porque, por outros motivos, o iniciado de maior calibre também não pode (nem precisa) perder tempo com arrazoados...
Muito pelo contrário, o panfleto é aquele comburente que proporciona o encontro de iniciados e de profanos — é, exactamente, aquele comburente que proporciona as reacções que interessa ao iniciado aferir...
... e para já, basta...
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Entre muitas outras virtudes, a "Resposta à questão: — O que é o Iluminismo ?" vai-nos
permitir compreender porque é que Kant nasceu em... Kaliningrado.
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(à suivre...)