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"As Cortes e a Constituição não são coisa nova nestes Reinos: são os nossos direitos e os dos nossos Pais." — in Manifesto da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, de 15 de Dezembro de 1820
Depois de nos apresentar no primeiro parágrafo a sua tese, a que decidiu associar uma acusação, e nos transportar retoricamente do mundo das razões para o mundo dos motivos, o nosso filantropo conduziu-nos, decididamente, para o cenário de uma barra de tribunal. E nela, em vez de solicitar o papel de juiz e filosoficamente argumentar sobre a questão tendo em vista uma decisão equânime e isenta, preferiu envergar a toga do acusador, assestando contra o homem toda a acrimónia da sua verve...
Quanto a nós, que recusamos a adesão interesseira dos leitores mais rebeldes às primícias do escândalo mediático — tanto mais que já somos capazes de intuir como este corrosivo estilo panfletário florescido com as Luzes é também um dispositivo para encher o estômago aos empreendedores da edição e que já expusemos como deve estar associado a uma evidente intenção / interpretação em "duplo registo" —, iremos manter um espírito de circunspecção e prosseguir com... método.
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" Resposta à questão: — O que é o Iluminismo ? "
(a partir do texto homónimo de Immanuel Kant, 1784)
Segundo Parágrafo
5. "A preguiça e a cobardia são as causas de os homens em tão grande parte, após a natureza os ter há muito libertado do controlo alheio (naturaliter maiorennes), [482] continuarem, todavia, de bom grado menores durante toda a vida; e também de a outros se tornar tão fácil assumir-se como seus tutores."
— É assim que o autor dá início à discussão da sua "tese". Colocamos agora "tese" entre aspas porque, de forma mais precisa, se trata de uma acusação — um libelo.
— Começa aqui, portanto, a expôr as suas alegações. Notemos porém que, invocando o autor a prática de uma ilicitude, deveria claramente mencionar à cabeça sob qual lei vigente a pode identificar como tal... Levanta-se assim uma questão assaz peculiar e merecedora de especial atenção — por exclusão de partes: o autor da acusação não invoca qualquer tipo de infracção a algum:
1) mandamento divino ou sobrenatural ou
2) prescrição das tradições, costumes ou usos de
qualquer comunidade ou local...
... da mesma maneira, não vislumbramos o vestígio da menção de qualquer:
3) preceito de ordem natural,
4) norma de algum sistema legal ou
5) decreto soberano de algum potentado.
— Nada dissso... como desde as primeiras linhas já tudo parecia indicar, não nos encontramos em nenhum foro de ordem racional, mas perante uma censura de ordem moral (note-se que apenas subscrevemos neste local esta distinção porque ela é central ao próprio sistema kantiano) de contornos peculiarmente difusos.
— Em consequência, no que toca à infracção cometida encontramo-nos no habitual miasma nebuloso que tanto agrada a estes mestres da dissimulação: o seu fundamento consiste apenas na vaga remissão para um (f)acto de natureza:
"a natureza" + "há muito (tempo ?)" + "os libertou (aos homens)" +
"do controlo alheio (sem especificar ainda quem ou o quê poderá ser este "alheio")"
— À proposição que apresenta, associa o autor a pomposa designação latina de "naturaliter maiorennes" (ou seja, "maioridade por natureza"). E com esta operação de erudição pedante, silencia todos os infantes. Lá está — os menores: como ignoram a língua em que lhes falam, acabam por acatar o pedantismo como axioma. Para nós, que não lhe vemos evidência nenhuma, gostaria o autor que passasse por postulado. O que até poderíamos aceitar, se não lhe antecipássemos o vício. Assim, não estaríamos dispostos a atribuir-lhe senão o valor de uma hipótese... isto se o autor se propusesse à respectiva avaliação... o que não acontece. Portanto, não passa de uma daquelas petições de princípio rotineiras entre os Modernos...
— E passamos nós a explicar porque a taxamos de petição de princípio — ora, diz o autor que:
1) a natureza
2) há muito (tempo ?)
3) libertou
4) (os homens)...
(deixamos o "controlo alheio" para mais adiante...)
— ... retorquimos nós:
1) que "natureza" é esta que aqui tão "naturalmente" aparece ???
— a "natureza-mãe", a "matéria", a "natureza sensível" de que são "feitas" as "coisas" ?
— ou aquela "natureza humana", aquela "natureza-forma", aquela "essência" que as "modela" ?
— as duas ao mesmo tempo ?
— ou ainda "outra coisa qualquer" ???
Ignoramos...
2) que "há muito" vem a ser este que tão "brevemente" aqui é mencionado ???
— Supusemos nós "tempo"... sem sequer fazer ideia de "quanto"...
— Poderá ser "muita" a "eternidade" também ?
— Ou referir-se-á o autor "à sempre excessiva espera de um tempo que tarda a chegar" ???
— Ou será ainda qualquer coisa de "outro", incluindo isto tudo e o contrário também ?
Ignoramos...
3) "libertou" ???
— Que vem a ser isto ???
— Uma antropomorfização da "Natureza-Mãe" ???
— Um teleologismo essencialista ???
— A remissão para alguma Antropo-Cosmo-Teologia redentora de um estado primal
decaído, ou uma espécie de Teologia da Libertação avant la lettre ???
— Sinceramente, esta da "natureza libertadora" não poderia ocorrer senão a um Iluminado
muito para além de toda a experiência possível...
Enfim...
Finalmente, os habituais 4) "homens"...
... e chega, pois já nos cansámos de desmontar esta abstracção obtusa da "humanidade em
geral", sujeito de predicação de qualquer patacoada que lembre assim no momento...
(Só porque nos move uma irritante sensibilidade aos disparates, basta mencionar que há duas ou três linhas atrás o próprio autor tinha admitido que poderiam existir alguns desgraçados mais ou menos "carentes de entendimento"... Ora, não serão eles humanos também ? Ou serão então as vítimas inocentes de alguma discriminação naturalística ???)
Basta...
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Argumentar com Modernos, dá sempre nisto... e quando Iluminados, ainda é pior...
O grave problema de pretender fundamentar racionalmente a faculdade de julgar conduz sempre àquele bico de obra de ter de fundamentar racionalmente a razão... ou seja, de tentar levantar a mesa quando estamos sentados em cima dela...
Em consequência, começa sempre o Moderno por lugares comuns ou petições de princípio. Não há apriorismo que lhe valha.
E só nos entregamos a este (inconsolável) desabafo porque depois de nos embrenharmos em meia dúzia de linhas deste "luminoso texto" continuamos sem avançar sequer um passo... bem pelo contrário — regredimos até ao princípio dos tempos...
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Afinal, este "segundo parágrafo" vai-nos tomar...
... mais um bocadinho...
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Ouroboros
O Idealista Transcendental saboreando a sua vitória...
... ou quando um fulano acaba por reconhecer que aquilo que
está antes da física é precisamente... a metafísica...
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(à suivre...)