Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]
"As Cortes e a Constituição não são coisa nova nestes Reinos: são os nossos direitos e os dos nossos Pais." — in Manifesto da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, de 15 de Dezembro de 1820
Regresso ao Futuro
Além de nos servir para recordar aos fogosos "progressistas" o carácter multimodal e multiforme dos discursos, o aperitivo desta meia-duzia de linhas da "Resposta à questão: — O que é o Iluminismo ?" ajudou-nos a mostrar como é rotineiro que as interpretações autocomplacentes conduzam os comentadores mais sanguíneos a opinações que não passam exactamente... disso mesmo...
De resto, para que fique um breve registo das nossas conclusões até ao momento, aqui lavramos a nossa sentença: a "Resposta à questão: — O que é o Iluminismo ?" não é um texto argumentativo. Logo, a despeito de tudo aquilo que os Iluminados pretendam fazer crer aos leigos infantes, não é, estritamente falando, um texto filosófico. Revela-se, isso sim, desde o início, um manifesto eivado de preconceitos, efeitos retóricos e apelos a motivos. Em suma, é um manifesto ideológico e, por isso mesmo, sem sombra de dúvida, um texto revolucionário.
Como peça de retórica, recorre a um estilo que vai beber aos modismos provincianos (e convém saber que moda e moderno provêm exactamente da mesma raiz) daquela excêntrica Prússia que viu nascer o autor — o recurso a trejeitos do legalismo então germinal, a exaltação das virtudes castrenses tão em voga numa sociedade em via de militarização acelerada, a cega paixão pela frígida "Ratio"... e podíamos continuar nesta linha apontando também a tão Voltairiana e pedante sobranceria de erudito, além de outros "tiques" que algures talvez valha a pena mencionar.
Enquanto manifesto ideológico é um texto de tal forma macaco do ponto de vista argumentativo que depois de identificado o elementar apelo a motivos nem se justifica perder mais um segundo a catar-lhe outros paralogismos...
... assim, depois de lhe desencantarmos dois ou três tópicos da agenda discreta, já nos preparávamos para nos lançarmos na arrasadora carga final...
... sobre um espantalho...
•
Pausa — porque incorremos no erro que tanto gostamos de apontar aos outros, porque, sem rodeios, também nós estávamos a contemplar o adversário com o olhar autocomplacente do filósofo encartado que é a marca dos tempos...
Contudo, se procurarmos ver a "Resposta à questão: — O que é o Iluminismo ?" no seu contexto, torna-se evidente que a) é um texto que não se dirige a filósofos. Aliás, no momento histórico em que foi publicada, aqueles que poderíamos considerar "filósofos" não passariam de meia-dúzia de mosquitos, ainda rodopiando encandeados em volta da Crítica da Razão Pura do Mestre...
Por outro lado, é igualmente óbvio que b) é um texto que não se dirige a ignorantes. Ou seja, o interlocutor de Kant, embora menor, não é o analfabeto nem o iletrado...
E assim nos deparamos com esse singular personagem que é o voraz leitor de jornais !
Então, talvez agora tudo se torne mais simples... Afinal, o azedume que segrega o nosso revolucionário idealista tem um alvo extremamente fácil de identificar — é aquele pequeno burguês com que já tivémos ocasião de nos encontrar faz alguns tempos, lendo em vernáculo o Discurso do Método... Ora, este recém-letrado pela escola paroquial, se por um lado vive sôfrego das delícias mundanas, por outro permanece avesso às promessas de luminoso paraíso terreal devido ao longínquo eco das admoestações do cura lá da aldeia...
E assim chegámos ao ponto de partida de todos os outros, mas percebendo (ainda que só pela rama) porquê: a "Resposta à pergunta: — O que é o Iluminismo ?" não passa de um vulgar...
... panfleto anticlerical.
Porque embora para a maior parte dos leitores de jornais do final do século XVIII a lógica, as regras de inferência válida do discurso argumentativo, a ciência jurídica e as artes bélicas não fossem mais bem conhecidas do que quaisquer outras "ciências ocultas", os princípios centrais da doutrina cristã eram-lhes extremamente familiares...
Por isso, logo desde a primeira linha pressentiam muito bem aonde os estavam a querer levar...
(Já agora, bem ao contrário do que actualmente acontece com o voraz espectador de telejornais, que além de desconhecer os mais básicos rudimentos de lógica, argumentação, direito, estratégia e o que mais se quiser, faz gala em desprezar sobranceiramente todos os monumentos erigidos pelos seus próprios avós...)
Falta apenas registar como o próprio contexto sócio-cultural da longa estiagem do espírito vinha desde há um par de centenas de anos metodicamente preparando o ambiente perfeito para as fulgorantes experiências de pirotecnia de que as linhas do nosso autor são apenas mais uma acendalha...
•
Em suma, para qualquer teutónico minimamente letrado e (in)formado, o aguilhão de uma Nova Ordem afastada de todos os desígnios de igreja, ainda que protestante, estava cravado desde a primeira linha:
"lluminismo é a saída do homem da sua menoridade de
que ele próprio é culpado."
A imagem salvífica da Luz Redentora (e "Aufklärung" até corresponde melhor a "iluminação" do que a "Iluminismo") evoca sem rodeios aquele pobre homem caído, aquele filhinho de Deus humilde e resignado que expia o ominoso pecado primal de tão esquiva evasão...
"A menoridade é a incapacidade de se servir do
entendimento sem a orientação de outrem."
Aqui é necessário esclarecer que na sua dilecta Prússia Kant se dirige tanto a católicos como a protestantes, e se os Romanos ruborescem imediatamente quando adivinham a imolação da Autoridade, da Tradição e da Hierarquia que lhes prepara mais este incendiário, já os Transalpinos suspiram de alívio, pois o domínio que exercem é bastante mais frouxo... E não é preciso dedicar outra linha aos demais, àqueles impulsivos que muito avant la lettre já pairavam para além do bem e do mal, para os quais tanto a figura do Padre como a do Pastor apenas ocorrem como a de "aqueloutros" opressores interesseiros...
"Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não
residir na carência de entendimento, mas na falta de decisão e de
coragem em se servir de si mesmo, sem a guia de outrem."
O apelo agora torna-se claro, e os campos definem-se com rigor geométrico: — Basta de tibiezas! O cidadão tem de assumir a sua autonomia. A tragédia dos Primeiros Pais não pode servir de desculpa a ninguém, e estender a mão a Pais substitutos não passa de vil cobardia! — a Nova Ordem está aí, e interpela o indivíduo sem restrições : Ergue-te vilão !
"A preguiça e a cobardia são as causas de os
homens em tão grande parte, após a natureza os ter há muito
libertado do controlo alheio (naturaliter maiorennes), continuarem,
todavia, de bom grado menores durante toda a vida; e também de
a outros se tornar tão fácil assumir-se como seus tutores."
Com uma economia notável, o autor faz-se afinal entender limpidamente perante o seu público: aquele inominável "outrem" que tanta espécie nos fez exibe-se sem véu para o anticlericalista primário...
E assim podemos concluir — finalmente ! — a interpretação do 5.º período da obra:
"A perguiça e a cobardia são também as causas de
ser tão fácil aos sacerdotes (os "outros") assumirem o papel
de tutores dos seres humanos."
•••
Chegados a esta conclusão tão óbvia, restará perguntar-nos porque nos deixámos enredar de tal forma na análise de uma tão mínimal meia-dúzia de linhas...
Para aqueles a quem não é aparente a subtileza: Kant esteve até agora a esgrimir com fantasmas, não nomeando de forma directa adversários, circunstâncias, princípios ou objectivos...
O que há são insinuações e suspeições dirigidas — diríamos — "à bon entendeur..."
(E para quem nestas linhas tão asperamente censura a cobardia dos menores, é lamentável como simultaneamente nos dá um tão triste exemplo da cobardia dos Mestres...)
Pela parte que nos respeita, conhecemos de cor esta estratégia da modernidade — e para lhe dar um nome à altura da época, vamos chamar-lhe discurso oblíquo, no qual, deixando em aberto o flanco da argumentação racional, o autor se faz valer pela (ainda que suposta) audácia... e se à "audácia" chamarmos "topete", imediatamente nos pode assomar à memória alguma coisa...
A "abertura de flanco" não é, contudo, uma debilidade — é, precisamente, aquela rarefacção que dá ao discurso a textura tão sugestiva, tão apelativa para a imaginação: no fundo, aquele tom de "canto de sereia" que a todos consegue enredar...
E neste seu enredar, já contámos três ou quatro níveis de interpretação. Suspendemos a divagação justamente aí para nos não acontecer também a nós mordermos venenosamente a nossa própria cauda...
Quanto aos fogosos, aos sanguíneos, aos impulsivos, aos exaltados da liberdade rebelde — e é a esses que interessa chegar: a legião está já de armas na mão...
•••
com palavras
(continua)