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Em que não se trata do fim, nem do princípio do fim, mas sim — enfim ! —,
do fim do princípio. Como dizia o outro. E muito bem.

 

Depois de nos atolarmos entre as névoas do Iluminismo, as águas turvas do Esclarecimento e o lamaçal da transcendentalidade e de a fogueira das paixões alheias nos empurrar para o derradeiro conforto das promessas utópicas, bem nos poderemos interrogar sobre o interesse desta nossa excursão...

 

Afinal, não temos a presunção de encontrar por aí um único inconformado que tenha deixado de se sentir solidário com os desígnios do Mestre e de se manter agarrado à convicção de que se a via para a Iluminação é realmente tão tortuosa, isso apenas se poderá dever àquele obscurantismo e apego à servidão em que culposamente vivem todos os ignorantes.

 

De resto, até nós somos obrigados a reconhecer que o eficaz dispositivo de sedução que Kant seleccionou como portal do seu monumento não é um adversário cujo valor se aproxime sequer minimamente ao mais decrépito dos arcanos...

 

É perante esta sensação de futilidade crítica que nos vemos obrigados, portanto, a abandonar o microscópio e regressar ao mundo tal como se dá...

 

 

Embora já tivessemos apresentado alguns indícios nesse sentido, eis chegado o momento próprio para retirar as justas consequências de o presente opúsculo de Kant não se dever obviamente a nenhuma intuição particular do autor nem exprimir qualquer intenção que lhe fosse específica. Bem pelo contrário, esta sua obra enquadra-se com a maior precisão num estereotipo mais vasto que agitava na época a Europa inteira — o da Revolução Providencial que a deveria transportar da era do "Despotismo" para a era do Estado-Nação Liberal.

 

E é exactamente esse movimento subversivo que o nosso Prussiano autor pretende legitimar perante o seu público.

 

Ou melhor — que ele já nem sequer necessitava legitimar, uma vez que a aspiração à autonomia se encontrava transversalmente assimilada por importantes estratos da sociedade civil da época (e neles incluímos, como é evidente, todos os nossos amigos burgueses "devoradores de jornais")... Sendo assim, bastava-lhe essencialmente canalizá-la, ou seja, orientá-la devidamente.

 

E é na atenção prestada a esta orientação que sobressai o método da Modernidade, que desde o início temos vindo a apontar — se nas Ilhas Britânicas o "problema" fora discretamente resolvido depois do banho de sangue patrocinado por Cromwell, já em França os petulantes Bourbons preferiam acreditar que a Esclarecida simpatia dos engenheiros iria durar para sempre ou, no caso contrário, que até poderiam passar muito bem sem ela...

 

Porém, no ano de 1784, aquele em que Kant publica o panfleto que temos debaixo dos olhos, o descalabro financeiro do Despotismo Esclarecido gaulês, definitivamente rendido às virtudes do imperialismo centralista mas renitente em abdicar das prerrogativas discricionárias na gestão do Tesouro e minado pela incapacidade de mutualizar a dívida através da adopção do imposto universal em virtude das isenções e franquias que o soberano continuava a dispensar aos quatro ventos, anunciava já o dobrar a finados sobre o trono de S. Luís...

 

Perante a anunciada bancarrota, nas tipografias, nos cafés e nos boudoirs de Paris os poderes obscuros, a fúria revanchista e a dissolução moral abraçavam-se amorosamente na utopia das utopias: o Império da Razão que prometia fazer jorrar o maná de leite e mel da boca das escopetas...

 

Ora, perante o frenezim de sangue que agitava as margens ocidentais do Reno e a verve incendiária que jorrava das penas dos enciclopedistas, o nosso Autor até se deixava tranquilamente colocar no pusilânime papel de um qualquer cabotina bota-de-elástico...

 

— É que, ao contrário do que se passava em Versalhes, para as bandas de Berlim e Königsberg os Fredericos gostavam de se apresentar como "bons alunos", e a cibernética preparava-se já para um grau de sofisticação muito mais apurado...

 

 

Podemos, assim, regressar pela última vez à devassa das camadas de sentido da primeira parte deste nosso obscuro texto — e agora para lhe apontar uma das facetas políticas da famosa "Revolução Copernicana" de Kant que é por demais evidente, embora raramente mereça a atenção devida:

 

O objectivo primordial da luta pelo poder deve
deslocar-se da conquista violenta dos seus centros
de exercício
para incidir sobretudo no controlo
das respectivas bases de apoio
.

 

Colocando a questão de forma mais figurada, para que melhor se perceba, o nosso filósofo tem discretamente vindo a sugerir àqueles que o sabem ouvir que, em lugar de armar exércitos contra os "Reis-Sóis" ou os "Astros-Reis" que brilham no centro do Cosmos, seria muito mais eficaz usar os recursos para dirigir os errantes até "novas órbitas"...

 

Ou seja — que em lugar de assestar baterias contra os guardiões do status quo e os seus potentados (leia-se, por um lado, a realeza, e por outro, o clero e a nobreza), ficaria a revolução muito mais bem servida se os respectivos arautos se dedicassem a minar o espírito dos povos até então mais ou menos submissos às autoridades vigentes.

 

Significa isto que procura instalar definitivamente no equilíbrio das relações de poder das sociedades europeias o primado da luta política, ou seja, o primado da luta pela interioridade das consciências através das ideologias. O mesmo é ainda dizer que lança o germe da democracia representativa no âmago das sociedades Ocidentais.

 

Ora, é este tema que irá sem dúvida reclamar a fatia de leão das nossas futuras reflexões, mas neste momento podemos afirmar com alguma segurança que se até ao advento do Iluminismo se tinha vindo lentamente a impor na Europa Cristã o primado das comunidades políticas enquanto comunidades de valores — ou seja, de comunidades que partilham a fidelidade a uma religião e a um conjunto de normas estruturantes comuns a todos os seus membros activos (sem que deixassem de coexistir no seu seio as comunidades separadas) —, a novidade que se instala nos espíritos deslumbrados pela modernidade é a de que a comunidade política não passa de uma associação arbitrária de cidadãos abstractos condicionados pelo nascimento em territórios geograficamente bem delimitados e em meios sócio-economicos precisos.

 

É este trânsito de uma cultura definida por territórios afectivos — destituídos dos precisos limites impostos pelas fronteiras imaginárias rabiscadas sobre papel nos gabinetes dos burocratas — e por ordens sociais professas — aquelas em que, embora partindo de uma base, sem dúvida, predominantemente hereditária, a filiação se acaba por conformar às vivências e opções particulares dos indivíduos concretos — para uma outra cultura enformada pelas ideias de territórios geográficos meramente abstractos e de classes sociais de características eminentemente económicas — ou seja, uma cultura dotada de bases abstractas, mensuráveis e quantitativas — que autoriza a instalação do Estado-Nação Liberal e das suas indispensáveis massas anónimas.

 

Doravante desencarnado e convertido num átomo estatístico, o indivíduo vai tornar-se ele próprio o campo de batalha em que se decide a sorte dos impérios. Subtraído à sua esfera de pertenças concretas — sejam elas materiais ou espirituais — irá ocupar a posição de alvo principal de uma guerra intelectual cujo objectivo assumido é a revolução interior.

 

Neste complexo processo cujo desenlace continuamos a aguardar nos dias que correm, é o homem que se encontra em liça contra si próprio — agora já sem heróis, sem paladinos, sem santos nem sábios que o guiem, o acompanhem ou o armem sequer na refrega...

 

 

Mas avançamos demais !

 

 

No contexto em que Kant se encontra, ainda há lugar para voluntarismos... e é exactamente o papel tutelar que reivindicam os filósofos... É o protagonismo na entediante liderança das massas que pretendem usurpar ao clero.

 

Em suma: a promessa da primeira meia-dúzia de linhas do texto que tanto nos tem ocupado é a de que em lugar de desbaratar recursos em Revoluções "à francesa", em lugar de perder tempo em arengas contra a Religião, o Poder dos poderes mais não terá do que confiar nos filósofos para reformar o espírito dos povos...

 

 

 Nos finais do século XVIII, uma destas modas do Despotimo Iluminado
tinha passado à história e os seus costureiros ainda
não tinham percebido porquê...
Reis.jpg

— Diga o leitor qual das duas é muito mais janota e capaz de o fazer perder a cabeça.
Justifique numa composição de meia-dúzia de linhas, usando o acordo ortográfico em vigor.


E parabéns! Se acertou na resposta, poderá candidatar-se ao sorteio de um diploma
de acesso ao exercício de cargos políticos na lojinha mais próxima !!!
(Não confundir com "licenciatura académica", p.f.)

 

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publicado às 13:41



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