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"As Cortes e a Constituição não são coisa nova nestes Reinos: são os nossos direitos e os dos nossos Pais." — in Manifesto da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, de 15 de Dezembro de 1820
O temor reverencial que as antenas estrangeiradas da cultura local conseguiram deslocar para a esfera de tudo o que nos chega com chancela de longe foi assumindo ao longo dos tempos modalidades deveras elaboradas e, sem dúvida, merecedoras da maior atenção. Neste momento, porém, esse vício da vontade interessa-nos exclusivamente enquanto "versão higienizada" do abominado "argumento da autoridade" que se tem vindo a difundir com presteza entre os mais recentes frequentadores dos nossos olimpos para inglês ver, através da desmesurada inflação das "figuras exemplares" da tão incensada "Cultura Universal".
Certamente, esses eruditos por conta de outrem hão-de classificar como megalómana soberba a pretensão de demolir em duas penadas o templo da modernidade laboriosamente erguido pelos mais luminosos arquitectos do humanismo filantrópico depois que resolveram reerguer-se das trevas. Todavia, será precisamente esse o nosso desígnio nos próximos tempos, pois em boa verdade aquele colosso grutesco elevado a perder de vista até às alturas apenas possui como alicerce no submundo dos mal-entendidos um par de falácias esquecidas que insidiosamente tomaram o lugar de incontornáveis pilares da Civilização Ocidental.
O primeiro desses dois aleijões do intelecto humano que só o supramencionado temor reverencial vai mantendo ao abrigo de qualquer escrutínio lúcido é-nos familiar desde os bancos das escolas secundárias — aqueles estabelecimentos que os formatadores de mentes escolheram para nos ir impingindo oficialmente a excelência do embrutecimento:
O bom senso é a cousa do mundo mais bem distribuída, porque cada qual pensa ser tão bem provido dele que mesmo os que são mais difíceis de contentar noutras cousas não costumam desejar mais do que têm. E não é verosímil que todos se enganem a tal respeito; antes isso mostra que o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se chama bom senso ou razão, é naturalmente igual em todos os homens; e que assim a diversidade das opiniões não resulta de serem uns mais racionais do que os outros, mas somente de que conduzimos os nossos pensamentos por caminhos diversos, e não consideramos as mesmas cousas.
René Descartes. O Discurso do Método. Lisboa: Sá da Costa, S/D [1637], p. 5, Primeira Parte, § 1.
Para o leitor mais atento, será fácil perceber porque é que as primeiras linhas desta obra que é considerada como o esplendoroso portal da Modernidade na área da especulação filosófica não se encontram entre as mais publicitadas pelos aduladores do respectivo autor. Afinal, só o acompanhamento da sua leitura com avultadas doses de incenso reverencial permite dissimular como nelas se encontra a mais patética amostra do que pode ser uma argumentação acerca da natureza racional do ser humano.
Com efeito, a listagem de falácias identificáveis nestas tão breves linhas é de tal forma notável que a dúvida hiperbólica sugerida será unicamente a de saber se não se encontrarão lá todas elas... Atalhando caminho, este verboso arrazoado que, dizem os exegetas, pretenderia aplicar à filosofia a ordem da dedução geométrica, mais não faz do que pomposamente maquilhar como evidência axiomática aquilo que não passa de uma hipótese, a saber — que a "razão é naturalmente igual em todos os homens." O resultado é uma descarada petição de princípio, apenas ignorada pelos néscios porque lhes parece derivar necessariamente daquela tradição filosófica que define o ser humano como "animal racional"... Adiante...
Ora, identificar "razão" e "bom senso" sob a capa da grosseira noção de "poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso", admitir como "naturalmente igual" o desenvolvimento de uma faculdade, competência ou função que se manifesta sob formas tão diversas e os complexos traços que lhe poderão estar na origem, decretar mandamentos para "todos os homens" à imagem de um Deus omnipotente — isso não foi, com certeza, lançar as bases de nenhum "progresso" do conhecimento humano. Foi, isso sim, deixar abater a confusão sobre os homens e lançar ao lixo longos séculos de fastidiosas indagações sobre a complexidade para erigir em princípio supremo da antropologia uma compulsão intelectualista, abstractizante, reducionista, normalizadora e massificante — foi, como veremos, decretar o regresso da servidão do Homem:
[...] E não sei de outras qualidades que sirvam para a perfeição do espírito, porque, quanto à razão ou senso, que é a única cousa que nos torna homens e nos distingue dos animais, quero crer que existe inteiramente em cada um, seguindo nisto a opinião comum dos filósofos, que dizem não existir mais ou menos senão entre os acidentes e não entre as formas ou naturezas dos indivíduos duma mesma espécie.
René Descartes. O Discurso do Método. Lisboa: Sá da Costa, S/D [1637], p. 5, Primeira Parte, § 2.
Ora, aquela entidade à qual apenas convêm as substâncias normalizadas, as substâncias sem acidentes contingentes, é a técnica.
Por isso, repetimos, postular a razão como forma pura do Homem não é anunciar "progresso" nenhum — antes é decretar o "regresso às origens" e impor um novo dogma de fé: destituído da liberdade, o Homem não se distingue das outras coisas do Mundo...
Depurado da ordem concreta das razões, o ser humano deixa-se inadvertidamente encerrar no Império Abstracto da Razão Pura, no Império Abstracto da Tecnociência.
Bem-vindos ao passado...
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"я твой слуга, я твой работник"
Perceber uma nesga de russo sempre foi muito útil...
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