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8. Tempos Modernos (Os Selvagens)

por PM, em 11.04.15

Se a primeira falácia do modernismo nos pôs todos a afinar alegremente pelo mesmo diapasão empíreo como dóceis operários normalizados da cadeia de montagem dos filantropos, a segunda "falácia original" com que nos brindaram estes valentes amigos do alheio não estava menos repleta de boas intenções...

 

Boas intenções, até será pouco — porque o que se tratava mesmo era da Restauração do Paraíso Terreal nos quintais dos nossos tetravôs! Afinal, depois de serodiamente se ter instalado ao leme da sua poltrona de luz e divagar ele também por todos os mares antes mapeados, o Iluminado não podia deixar os seus créditos por mãos alheias e apresentar ao Mundo um Descobrimento de menor quilate que os do lusitano patego!

 

Qual Caminho Marítimo para Índia, quais Santas Cruzes, Ceilões ou Malucas!? Qual pimenta, qual ouro, quais chás, pau preto, noz moscada ou canela!? Aquilo que o Iluminado tinha para nos trazer era nada mais nada menos que uma evidência do Paraíso... em pessoa e em pêlo!!!

 

Com efeito, a novidade do nosso Prometeu renascido ultrapassava de longe as fantasias dos já alquebrados pioneiros renascentistas que, dedicados ao resgate das "Eras de Ouro" de saudosa memória, as transplantavam para quaisquer nenhures mais ou menos ao pé, insuflando os seus contemporâneos de uma fé tão progressista e redentora quanto, infelizmente, pouco original e competitiva... Nada disso!

 

A magna descoberta das Luzes era a de que, afinal, as narrativas da Queda que há milénios assombravam aqueles paraísos perdidos não passavam de mitologia ignorante! E para o atestar, bastava observar os retratos dos "selvagens" desenhados nos mapas! Como é que essa gente tão festivamente emplumada e em corpo tão bem feito permitiria continuar a esconder aos olhos de uma geração emancipada que a filiação da decadência e do deboche só podia radicar na própria... Civilização???

 

Afinal, o Éden estivera sempre ali, logo a oeste do nosso nariz, servindo de abrigo à mais pura natureza humana enquanto se banqueteava com manás de ambrósia silvestre e copulava sem culpa... Extraordinário! A sagacidade do Iluminado permitia-lhe desvelar a Suma Verdade durante tanto tempo ocultada! Portanto, não era apenas a Razão Universal que se encontrava naturalmente em todos os homens — debaixo da parra, eram os numinosos frutos da própria moral natural que se podiam também contemplar!!!

 

Então, seria neste paradigma do Homem Puro há tanto esquecido entre os arcanos das Ilhas Perdidas que se encontrava a Arca do Tesouro Supremo, não só guardando a gema Pura da Razão, mas também — Oh, milagre dos milagres! — a sua versão ersatz, o colorido cristal da Razão Prática! Em suma, a higiene do "pecado original" não exigiria mais do que uma "pequena remoção" de toda a Moral, de toda a Ética, de toda a Deontologia com que, abusivamente, a Civilização Ocidental e Cristã teria sepultado a beleza erótica da Humanidade Impoluta!

 

Ao invés das áridas congeminações sobre a "razão pura", as especulações titilantes sobre o "bom selvagem" beneficiaram de excelente acolhimento não só entre a fina-flor da "alta sociedade" erudita mas até entre a ralé menos dada à especulação metafísica, e é, sem dúvida, o rotineiro regresso a este sensualismo interclassista que permite inebriar os Povos de cada vez que se lhes torna penoso dar mais um passo em frente rumo ao Abismo...

 

Teremos, com certeza, recorrentes oportunidades de regressar a tão frutuoso tema...

 

 

Eugène_Delacroix_-_La_liberté_guidant_le_peuple.

Uma "boa selvagem" em rebelião contra a cidade — não há nada como
um bom par de mamocas para estimular a consciência política...
(Delacroix, "La Liberté Guidant le Peuple", 1830)

 

 
[7, 9]
 
 
Post Scriptum

 

Na verdade, a temática do "bom selvagem" é de tal forma catalizadora que tem inspirado incontáveis "programas de actualização" depois do seu primeiro pulular debaixo do Sol. Entre os mais curiosos, conta-se o congeminado por Margaret Mead nos primeiros anos do século XX. Aquilo que este tem a revelar sobre as insondáveis profundezas do espírito da modernidade é especialmente interessante. Em mais de um sentido...

 
 

Coming_of_age_in_Samoa_title_page.jpg

 

Asselvajando os selvagens...
Ou Margaret Mead e o "fardo da mulher branca".
 

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publicado às 15:59



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