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"As Cortes e a Constituição não são coisa nova nestes Reinos: são os nossos direitos e os dos nossos Pais." — in Manifesto da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, de 15 de Dezembro de 1820
Neste momento, é forçoso para nós admitir que a incursão que dirigimos até aos baluartes mais remotos da modernidade mais não fez do que pôr a descoberto um segredo de polichinelo... As falácias que mencionámos são abordadas com o rigor conveniente em qualquer manual de filosofia minimamente honesto — aliás, o trilho seguido pela especulação filosófica a partir do século XVII consistiu, exactamente, na reparação desesperada dos fundamentos desse edifício que tinha nascido estruturalmente ferido...
Porém, se os dois pilares da modernidade enfermavam de uma falta de fundamento tão manifesta, teremos de admitir que apenas um programa de embrutecimento especialmente intenso, transversal e sustentado poderia assegurar não só a respectiva difusão, mas, sobretudo, a aceitação dos seus postulados, acatados como axiomas evidentes por tão largos sectores das sociedades contemporâneas...
Recapitulemos, portanto...
Sumário da Modernidade I
Da Estupidez Natural
A primeira aberração da modernidade foi, como vimos, a afirmação segundo a qual "a razão é naturalmente igual em todos os homens".
Ironicamente, para o néscio parece não haver nada mais óbvio — aliás, os modernos até lhe embrulham no pacote a confidência de que a apologia da racionalidade foi uma das mais gloriosas vitórias das Luzes contra as "irracionais trevas da religião católica", que até então teriam mantido na servidão a Europa e o Mundo.
Isto conduz-nos imediatamente a uma primeira constatação — torna-se fácil perceber agora por que motivo o "esplendoroso portal da Modernidade na área da especulação filosófica" nos foi oferecido em vernáculo: Descartes teria publicado o Discurso do Método em língua francesa porque a sua obra só podia ter como público esse burguês néscio que acabámos de nomear. "Burguês", porque tinha de dispôr de ambição de poder, de vontade de afirmação social e de posses suficientes para as concretizar. "Néscio", porque possuindo igualmente as primeiras luzes nas letras da sua língua materna, lhe faltava o domínio do latim para progredir nas Artes mais elevadas... Em suma, o leitor tinha de confundir a mera capacidade de ler e interpretar um texto com a faculdade de ajuizar sobre ele — ou seja, de avaliar criticamente o fardo de palha que lhe punham à frente.
Ontem como hoje, afirmar que o catolicismo defende alguma espécie de irracionalismo ou de inaptidão cognitiva humana é ignorar toda a história do pensamento cristão, especialmente em tudo aquilo que se deve às formadoras intervenções de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino — ou seja, é fácil, mas especialmente preconceituoso. Vemos assim como a falsa questão da "racionalidade" não passa de um espantalho para afastar a atenção daquilo que verdadeiramente caracteriza a modernidade: a determinação de fazer responder todos os homens perante o tribunal da razão com natural igualdade.
Uma segunda constatação refere-se ao abstraccionismo delirante de que faz prova o moderno... apresentar a existência de uma entidade universal a que se possa chamar "razão" — ainda que se trate de algum tipo de "A Razão" — e a existência de um conjunto de entidades universalmente idênticas a que se possa chamar "homens" em que a primeira entidade esteja também neles presente de forma universal, natural e idêntica é remeter a argumentação para um campo que permanecia tão intricado no século XVII como nos dias que correm... Ou seja, não é uma proposição que se possa apresentar como evidente em dois parágrafos. A clareza e a distinção já se encontravam perdidas, e a obra não tinha passado ainda da primeira página...
Mas o que permitirá, então, a este medíocre produto do engenho humano pronto para colapsar tão clamorosamente sob o mais superficial escrutínio ser elevado até aos píncaros da fama entre os nossos amigos progressistas?
Comecemos por notar que a naturalização da razão de que ele é, na verdade, o estandarte e a equalização do ser humano face à faculdade de julgar que nele se propõem correspondem, mais ou menos subrepticiamente, a uma banalização do sujeito cognoscente. Com efeito, se virmos o Discurso do Método sob esta óptica, percebemos como ele é instrumental para a demolição da autoridade da Escola, para a demolição da autoridade dos Velhos Mestres, para a demolição, no fundo, de um método e de um sistema que ele pretende apresentar como esgotados. E dizemos instrumental porque o importante não é, de todo, aquilo que nele se expõe — mas a forma banalizadora como o faz. O importante não é que ele se pronuncie — de jeito canhestro, aliás — contra a autoridade, mas, exactamente, que o faça da forma mais leviana e mais acessível:
Não interessam os argumentos, é suficiente o topete.
Na verdade, o espírito filantrópico do autor foi o de pôr nas mãos de qualquer burguês com meia dúzia de francos um calhau para arremessar à cabeça dos doutos... e, assim, colocar no apogeu dos Valores Supremos a sublime virtude das "boas intenções humanistas" — neste caso, as de proteger o experimentalismo subjectivista contra a autoridade da Escola.
Acrescentemos ainda que estas boas intenções são de tal forma notáveis que, além de franquearem os Foruns da Ciência aos opinadores comuns e ao seu inestimável bom senso, além de banalizarem, como dissemos, a faculdade de julgar, permitiram da mesma assentada banalizar o objecto a conhecer...
Para o burguês néscio, afinal, para que poderiam interessar os princípios ou os fins???
Apetece pensar — Como ele, limitemo-nos aos meios, que, isso sim, é o que nos vai enchendo a barriga...
Acabamos de denunciar as boas intenções... agora só falta perceber-lhes claramente os objectivos.
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Cenas dos próximos capítulos...
(George John Pinwell, "Study for ‘The Pied Piper of Hamelin’: The Children", c. 1871)
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